Sapato apertado
Entre outras coisas, um sapato apertado.
À medida que ia atravessando as ruas e subindo escadas
O sapato o pé sufocava, e em atrito ia arrancando camadas
Criando um ardido, uma vermelhidão, e depois um machucado
E então a meia de sangue se encharcava.
Basta um desconforto qualquer para o relógio começar a ficar lento.
Semanas correm mas o números não mudam
Os ponteiros vão impedindo a passagem do tempo.
Semanas correm e as feridas não curam
Aumentam e se enchem de sal.
Há o desespero de ir para casa e
Finalmente
Arrancar os sapatos
Atirá-los longe.
Examinar os buracos.
Mas os ônibus estão todos cheios
Ninguém ofereceu carona
Os taxistas passaram cegos
E terá de ir a pé.
Ironia:
O maldito sapato que deveria ser a separação
Entre a do pé e os cacos afiados do chão
Apunhala pelas costas.
Parece que qualquer medida de proteção é perigosa.
Finalmente em casa.
Com violência, tiramos os sapatos:
As meias estão limpas
Os calcanhares intactos.
E quanto todo esse sufoco
É mera exemplo
Para algo muito mais delicado?
E quando a própria pele é justa demais para o que oculta?
E quando o desconforto é provocado
Por um incessante fluxo de pensamentos aglomerados?
E quando não há feridas externas
Mas coisas que borbulham no sangue
E mesmo que invisíveis parecem eternas?
Não são os pés, nem os sapatos, nem os cacos de vidro.
São resultado de desespero contraído.
Desenvolve-se uma tortura assim nos corredores cheios de riso
Onde o único silêncio é o seu.
Nas casas onde o único resquício é uma grande montanha debaixo do tapete.
Nas quartos onde os carinhos são obrigatórios e são frios
Em todos os lugares onde a realidade tem que ser sempre maquiada;
Seja por sorrisos postiços ou por garrafa atrás de garrafa.
Acredito que é sim possível curar-se
Mesmo quando o corpo é o que estrangula o que quer que seja
É possível sim contrair felicidade e vomitar beleza.
Amar a sensação de sentir apenas e exclusivamente o pó e a rua pulsar debaixo dos pés.
Poema ganhador do 2º lugar no Concurso Nacional de Contos e Poesias promovido pela FAFIMAN