Na caixa de ébano

Na caixa de ébano

Sinto-me só e está frio

Não acho ruim é mera constatação

Deve ser coisa de estação

Não sei onde estou, quando é, onde vou

É de noite, sinto-me cansado

A pele queima brasas de calafrios longínquos

Meu temor é casa de mau caminho

Meu altar é de mármore, mas vivo sozinho

Risquei fósforos tentando purificar

Bebi do cálice divino, fui menino

Tentei de tudo para não culpar

Dedos calejados rezo meu terço, tercetos de mim

E da Santa Cruz quero a sapiência

Juntar toda sua simbologia

Fazer um pacto que una ciência e escatologia

Quero vermífugos de mim

Estou saciado, não quero da ceia o pão

Quero trigo semeado, solo arado

Mas ainda estou só, mundo de máquinas e pó

Levam-me ao devaneio de um mundo novo, e só

Tentaram me roubar para Marte

Ofereci-me como moeda, paguei a dívida

Ou pelo menos minha parte

Fui dos humanos a isca, o mártir

Ninguém soube de minhas perfídias

Estamparam minhas decaídas

Escorreguei quando pude, vivi a vida

Acendo charutos quando posso, vivo sozinho

Onde não há alguém para reclamar

Quando falha o pulmão tenho medo de ficar

Penso que talvez seja agora, sufoco, fico roxo

Entrando na graça de súbito volto, só de pirraça

Sei onde tudo está em casa, não me revolto

Levei da vida o que traguei em cinzas

O fogo consumiu meu filtro, meu tabaco

Não pude deixar o vácuo nos alvéolos, só feridas

Se estou sendo melancólico, talvez

Nostalgia de uma vida boemia é utopia

Tive amigos de viola e de caneca

Tudo sintomas de uma viuvez

Ainda hoje não sei despedir, acho fatal

Curto discos de vinil, limpo-os sempre

Poeira de músicas são notas de saudade

Entulho tudo o que tenho em meu lado individual

Procuro me isolar, é uma opção

Sou do meu casulo as metamorfoses

Resguardo-me para o conformismo de ser um eu-estável

Não peço mais do que dou, durmo sempre sozinho

E Criador, se for de seu fardo tirar meu último arfar

O faça sem pena, prefiro que seja rápido, não hei de pensar

Exijo apenas um belo epitáfio e um bom lacre no féretro

“Morre aqui um só homem, que se ouvir uma gafieira,

Há de arrebentar a madeira dos vossos tantãs”

Gabriel Amorim 09/08/2014