Cansada, constato

Cansada

De não ser verdade

De não ser mentira

De não ser carinho, nem toque

De não ser sequer raiva, ou ira

De não ser nada, nada, nada,

de amarfanhar o beijo na boca do sonho

adormecido na dança de pássaros mudos,

silenciados;

De pássaros entorpecidos neste frio absurdo

do Maio das horas a passar constante

em vértebras sugadas até à medula,

p’los carniceiros abutres…

escoam-se

nos vitrais bolorentos do desejo,

os sentidos, os afectos tresmalhados,

na detença, na tibieza do fim dum chão

lamacento. Deste onde, dia após dia,

hora a hora, em que me sento e jazo defunta

no cimo de um planalto

e renasço na fantasia obliquada

em claridade cortada por grilhões.

Grades, arames, linhas, fracas de finas,

pontilhadas no abstracto de um céu azul-cobalto.

Cansada

de ser apenas poemas de refúgios derrotados,

letras avultadas de fados com girassóis costurados

nos olhos de musgentos de mim menina,

escoam-se os sentimentos decrépitos

em formulários meticulosamente preenchidos,

na sentina repartição,

letra a letra, certinha, em maiúsculas,

como se impõe na nota minúscula de um rodapé:

“- Nome, sexo, idade, país, morada, localidade…”

enfim…

Cansada, constato:

- Ninguém pergunta por afectos!

Afinal, não se legislam por diplomas, decretos …

Mel de Carvalho
Enviado por Mel de Carvalho em 09/05/2007
Reeditado em 08/07/2009
Código do texto: T480294
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