SONHO DE MOFO / PERSEUS / LAJES RASGADAS

SONHO DE MOFO I (6/4/12)

Uma vez, em minha vida, houve milagre,

uma vez só, depois, fez-se a rotina

de dias bons e maus, luz matutina

que apenas vem, sem que meu dia consagre.

Guardo até hoje, que não se desconsagre

esse lugar que sua carne peregrina,

por uma tarde apenas, luz e sina,

tocou igual que arbusto de sumagre.

Perdeu-se ao longe o meu ideal funesto.

O milagre transmutou-se na miragem,

maravilha tão somente de dois dias...

E agora, ao recordar-me, até contesto

a realidade concreta de sua imagem,

como a presença de velhas zombarias...

SONHO DE MOFO II

Ela assentou-se em meu leito, descuidada,

sem recusar a sugestão de intimidade,

numa conversa de total naturalidade:

qualquer assunto que não levava a nada.

E quando um beijo, em coragem apressada,

eu lhe pedi, não fingiu negacidade;

macios seus lábios, doces, na verdade,

a conduzir-me a uma carícia mais ousada.

Até que, finalmente, reclinou-se

e me aceitou no seu lugar secreto,

em que, com gratidão, me aconcheguei.

Passado um tempo, meigamente, retirou-se;

ficou somente a marca desse afeto

e meu lençol nunca mais desamassei...

SONHO DE MOFO III

Guardo em segredo, no fundo de uma caixa,

esse lençol que ainda conserva seu suor;

marcas de sêmen, talvez, marcas de amor,

que enrolei, amarrado com uma faixa...

E quando a depressão se desencaixa,

levanto a tampa, transido de temor...

Talvez descubra, para meu pavor,

que alguém, movida por inveja baixa,

descobriu o lugar de meu tesouro

e o retirou dali, para lavar;

que tenha mofo, que esteja enxovalhado,

ou roído de traça, em meu desdouro...

Solto um suspiro quando o vou desenrolar

e o encontro de seu corpo ainda marcado.

HERÓIS NO INVERNO IV (Perseus) (5/4/12)

Hoje eu reino sobre Micenas e Tirinto,

sob meu cetro todo o Peloponeso.

Os aqueus em minhas terras não consinto,

mas permaneço sobre o trono preso.

Olho a lareira e nessas chamas pinto

velhas imagens de meu antigo vezo,

quando venci meus monstros e titãs...

Cansado estou, foram só vitórias vãs...

Nos velhos tempos, protegeu-me Zeus,

meu pai divino, que quando a mão abria,

deu-me poderes de herói e semideus.

Assim Athena seu escudo me estendia:

matei Medusa pelos próprios olhos seus

e o pescoço lhe cortei que endurecia.

Esteno e Euríale então me perseguiram:

com o capacete de Hades não me viram.

Andrômeda encontrei sobre um rochedo,

ao monstro Keto em sacrifício acorrentada;

porém de Hermes as sandálias, em segredo,

calcei então e foi a besta dominada...

Vencido o monstro que lhes causava medo,

ganhei Andrômeda, que após ser desposada,

concedeu-me sete filhos e uma filha,

esposa amada e constante na sua trilha...

Quando Medusa lhe mostrei, petrificado

por mim foi Atlas, hoje altaneiro monte...

Porém Pégaso, o meu cavalo alado,

sem que o soubesse, me furtou Belerofonte.

Em chuva de ouro fui por meu pai gerado

e após a morte, serei somente a fonte

das Perseidas, que em chuva brotarão

do lugar frio em que serei constelação...

LAJES RASGADAS I (7/4/12)

Tempo houve em que o lajeado se estendia

pelas calçadas todas da cidade,

muito menor que agora, na verdade,

enquanto a rua nada revestia.

Na poeira e lama, a roda se perdia

e as ferraduras, em sua rusticidade,

botas e esporas, com laivo de vaidade,

deixavam marcas na argila, noite e dia.

Havia sulcos marcados por carretas,

só no estio partidas suas beiradas,

passavam tropas de ovelhas e cavalos,

tufos de ervas assustadas nas sarjetas,

estrume e fezes pelas chuvas carregadas

ou comprimidos no fundo desses valos.

LAJES RASGADAS II

E quem andava a pé pelas calçadas

pisava em fortes lajes de granito,

rasgadas de pedreiras, pelo aflito

labor, sem ferramentas apropriadas.

Mas nem sempre essas pedras colocadas

nas ruas velhas em que hoje habito,

à força bruta, como quer o dito,

em contrapiso correto eram deitadas.

E com o tempo, mesmo sendo grossas,

foram sendo deslocadas por pressão

e aqui e ali gretavam rachaduras,

em que surgiam até pequenas poças,

que permitiam a escusa brotação

de minúsculas sementes nas ranhuras.

LAJES RASGADAS III

Assim, aos poucos, as folhinhas espiavam,

ervas do campo para si recuperando

o terreno que essa gente ia furtando,

nessa guerra inconsciente que travavam.

E quando os caules um pouco se alargavam,

com força súbita, iam as lajes estalando,

passagem para a luz reconquistando,

enquanto os pisos aos poucos esboroavam.

Mas foi depois que instalaram pavimento

sobre essas ruas de caudais de barro

ou argila em poeira pura levantada,

que as calçadas forçou o calçamento,

maior o trânsito de carroção e carro,

muito mais carga por ali depositada.

LAJES RASGADAS IV

E então foram os esgotos instalados,

para as águas pluviais e outros desejos,

que se buscava manter já mais secretos

e os passeios foram sendo perfurados,

postes de luz igualmente colocados,

as velhas lajes, para fins mais abjetos,

sendo trocadas pelos novos objetos:

tijoletas em contrapisos compactados,

nos intervalos com cimento preenchidos;

pouco lugar para as hastes de capim

que dos paralelepípedos ainda espiam;

somente em pontos menos percorridos

lajes antigas ainda olham para mim

e o solado de meus pés hoje resfriam.

PADRÕES IMPRECISOS (19 NOV 11)

AUSÊNCIA LEVE PRESENÇA

ILUMINADA DE AURORA

RECAMADA DE DEMORA

AUSÊNCIA LEVE DESCRENÇA

AUSÊNCIA SEM DESAVENÇA

AMARGURA DESSA HORA

REFLETIDA NA DESORA

AUSÊNCIA DE MALQUERENÇA

AUSÊNCIA DE BENEFÍCIO

QUE SE ESQUEÇA O MALEFÍCIO

E SÓ SE SONHE O IRREAL

QUANDO PRESENÇA SE TORNA

E AUSÊNCIA SE MOSTRA MORNA

EM SEU SONHO DESLEAL

PADRÕES IMPRECISOS II

SONHO FAZ ADOLESCÊNCIA

MARCADO DE IMPRECISÃO

SONHO EM CADA CORAÇÃO

SONHO FEITO DE IMPACIÊNCIA

SONHO LOGO EM DECADÊNCIA

NA REAL HESITAÇÃO

NESSA ATUAL IMPERFEIÇÃO

DA MODERNA IMPERTINÊNCIA

SONHO FEITO DE CASTIGO

POR EXIGÊNCIAS DA VIDA

QUE NOS LEVA DE VENCIDA

SONHO MORTO, MAS AMIGO

QUE PERCORRE A HUMANIDADE

NO DISFARCE DA SAUDADE

PADRÕES IMPRECISOS III

SONHO MORNO DE INOCÊNCIA

ESCONDIDO NO PASSADO

SONHO SEMPRE INTERLIGADO

NO CAUDAL DA SENESCÊNCIA

SONHO LOUCO DE IMPACIÊNCIA

SONHO VESGO SEMPRE ADIADO

DISFARÇADO DE PECADO

EM SEU SONHO DE DEMÊNCIA

AI, QUE SERIA DE NÓS

SEM OS PADRÕES IMPRECISOS

DESSES SONHOS QUOTIDIANOS

QUE NUNCA SE VAI EMPÓS

OS MIL SONHOS INDECISOS

QUE REVESTEM DESENGANOS

PADRÕES IMPRECISOS IV

SONHO AOS POUCOS SE TRANSFORMA

NÃO SE FEZ AINDA HOSTIL

MAS TEM MUDANÇA SUTIL

GRADATIVA EM SUA REFORMA

TALVEZ APENAS CONFORMA

MAZELAS EM DOR SENIL

NESSE TEMPO VARONIL

QUE AINDA NADA DEFORMA

TALVEZ ESTEJA SEGURO

DA FORÇA DE SEU DOMÍNIO

E NÃO QUEIRA SE ESFORÇAR

TALVEZ POR MALÍCIA PURO

DE FORA DE SEU ESCRÍNIO

NEM ME PROCURE AGRADAR

PADRÕES IMPRECISOS V

ENTÃO SONHO SE DESLOCA

DE UMA PARA OUTRA MENTE

NESTE CÂMBIO INDIFERENTE

DO LUGAR EM QUE SE ENTOCA

POUCO IMPORTA QUAL A BOCA

A SE DEMONSTRAR VALENTE

QUE IRÁ PROCLAMAR À GENTE

ESTE SONHO QUE SE INVOCA

POUCO IMPORTA QUEM SONHOU

ESTE SONHO INICIALMENTE

SEM AO MUNDO O REVELAR

NEM SEQUER SE A ALGUÉM CONTOU

TAL SUSSURRO INTELIGENTE

QUE SÓ QUER SE REALIZAR

PADRÕES IMPRECISOS VI

ASSIM OS SONHOS ILUDEM

AO INGÊNUO SONHADOR

QUE JULGA SONHAR DE AMOR

ENQUANTO OS SONHOS O MUDEM

ATÉ QUE OS SONHOS ESTUDEM

DA NOVA MENTE O VALOR

E A DOMINEM SEM CANDOR

E ANTE TODOS SE DESNUDEM

QUE SONHOS SÃO COISAS FORTES

E INVADEM SÉCULO INTEIRO

ATÉ SEREM REALIZADOS

E AO FRAGOR DAS MINHAS SORTES

RECOLHO O SONHO MATREIRO

DESSES ARES ENCANTADOS

IDELPRIM I (2 JAN 08)

Enfio a mão no bolso e a luz do sol

deixo escorrer pelas gretas da calçada,

por entre as tijoletas, encantada,

como sementes em teias de arrebol.

Planta gerada a meus pés, luz de farol,

meus sapatos dupla barca iluminada,

catamaran flutuando pela estrada,

um rio de ouro em odor de girassol.

Deslizo assim, sem vento e sem destino,

do barco duplo sem traçar a rota,

emprego a rede de ouro quais patins.

Percorro a noite do meu desatino,

meus olhos surdos à luz que me desbota

e o som mastigo em perfume de jasmim.

IDELPRIM II (18 NOV 11)

A luz do sol me traz perfume de açucena,

recolhido dos prados e colinas,

ou, quem sabe. pesadelo de minhas sinas:

foi de meu bolso que recolheu verbena.

A luz do sol se colore de alfazema,

mastigada por éguas em suas cismas,

ou captada por abelhas assassinas,

ou transportada aos chifres pela rena

que me trouxe o presente de outro dia:

um pacote de sol para a algibeira,

que guardei até a hora seresteira,

quando mais falta seu clarão faria.

E assim enfio meus dedos no calor

e o espalho, quais sementes de vigor.

IDELPRIM III

A luz do sol tem som de parapeitos,

de ameias e castelos, com seus fossos:

aqui velaram mil soldados moços,

aqui cessou o estridor de muitos peitos.

A luz do sol trás a voz de antigos feitos,

desses que dormem na calma de seus ossos,

traz os cajados e os porretes grossos,

mil armas do passado em seus defeitos.

E em suas maravilhas transitórias,

em que tudo se transmuta, sem cessar,

a raça inteira me vem acompanhar,

refletida no dourado dessas glórias,

que nunca duram mais do que o momento,

nessa marcha triunfal do regimento.

IDELPRIM IV

Ai, quantas coisas no meu bolso trago,

pela rena trazidas, num pacote!...

Eu trago a cobra silente no seu bote

e as esperanças vãs que eu mesmo esmago.

Eu trago os nenúfares do lago,

em que pousam os sapos, por escote.

Eu trago da poesia o velho mote

e bebo uva madura em cada bago.

Tudo isso é sol do dia quotidiano,

tudo isso é sol do velho dia de antanho,

tudo isso é sol do dia que não veio,

tudo isso a sombra perdida em mais um ano...

Não sei qual tirarei, no meu amanho,

e a mão no bolso enfio com receio...

IDELPRIM V

A luz do sol tem gosto de alvorada,

tem cores de alcachofra e doce anis,

tem cheiro de arenito e pó de giz,

tem faro sem sabor do imenso nada.

A luz do sol tem o gosto da negada

palavra desse amor que não se diz,

resposta do convite que não fiz

e o reverbero da promessa percolada,

da voz perdida nos meandros do desejo,

da ironia, da inveja e da impaciência,

tem gosto de insolência e covardia.

Saliva seca de esquecido beijo,

no bafo amargo da voz da impertinência,

no gosto ríspido do que nunca se dizia...

IDELPRIM VI

A luz do sol tem corriqueiro toque,

percorre a derme inteira em sua cadência,

por nenhum dedo demonstra preferência,

por mais que quem tem frio a luz invoque.

A luz do sol, de onipresente enfoque,

em vasto desperdício e improficiência,

por toda parte se derrama na impotência,

sobre a tonsura, a trança loura e o coque!...

A luz do sol que de meu bolso tiro

não traz consigo meus próprios dissabores...

É só ao entardecer que minha saudade

dos instrumentos que não mais eu firo

se espalha pelo cinza das mil cores,

que se perderam no vazio da eternidade.

URDEFESAS I (Defesas primitivas) – 14 JAN 12

Quase toda a criança, desde o berço,

se acostuma a pensar que, deste mundo,

é o centro e que possui profundo

controle sobre um servo onipotente,

que à sua disposição se acha terso:

basta chorar, pois mesmo quando oriundo

de longe, ele aparece, sem ser iracundo,

mas atende a seus desejos, bem contente.

Mas logo o mundo diverso se revela,

o servo onipotente é mãe ou pai,

talvez irmão ou tia – e é incapaz

de conceder quanto a criança anela;

por isso esta revolta que nos vai

insurgir contra a ilusão que se desfaz.

URDEFESAS II

Toda criança é plenamente egoísta

e tem de ser forçada a conceber

que para na família um lugar ter

deva aprender como tornar-se altruísta.

Muitas vezes, é bem árduo perceber

a dor dos outros; difícil é a conquista

da simpatia quando o mal se avista

e na expressão do rosto se faz ler.

Pois não se sente nunca a alheia dor,

por mais que nos comova a simpatia:

padece cada um a sua doença...

E nos momentos de maior amor,

sempre rebrota uma certa antipatia,

mesclada por suspeita e por descrença.

URDEFESAS III

Às vezes, é a sondagem dos limites

que conduz, nessa busca da esquivança,

o mau comportamento da criança,

que atende dos impulsos aos convites.

Mas és tu que essa atitude lhe permites:

é dos adultos a tarefa da ensinança

e na tua casa jamais terás bonança

quando chega o momento e então te omites.

Porque nenhuma criança te respeita,

se lhe deixares plena liberdade,

sem lhe mostrar o ponto de parar;

bem ao contrário, de traição suspeita,

porque não lhe domaste sua maldade,

como forma de um amor maior provar.

URDEFESAS IV

E quem assim limita-se a deixar

uma criança em plena liberdade,

para fazer quanto lhe der vontade,

nada mais faz do que a prejudicar.

Que está de fato um sociopata a ensinar

ou um tirano contra toda a humanidade,

alimentando a indiferença sem bondade,

pela falta de limites a encontrar.

Porque a maldade pode ser punida

e até contê-la se pode conseguir,

mas nada curva a total indiferença

e o resultado será péssima vida

para a criança que alheia persistir:

fantoche apenas de uma angústia imensa.

URDEFESAS V

Porque é certo que fora do imediato,

paciente círculo de seus familiares,

ninguém aceitará seus peculiares

caprichos egotistas do insensato

coração, que nunca aceita o fato

de que os demais não são seus auxiliares

e que espalha prepotência sem cuidares

e apresenta exigências sem recato.

Se a família não o fez, fá-lo-á a escola,

pela ação e reação de seus colegas

e encontrará mais árdua adaptação;

logo sua turma aprontará a degola

de boa parte de suas pretensões cegas,

para mostrar-lhe seu lugar, sem compaixão.

URDEFESAS VI

Mas permanece o Servo Onipotente,

transmutado em gentil Papai Noel,

em que os desejos encontrarão quartel,

através da simpatia de um parente.

Mas sofrerá depois mal consequente,

ao finalmente reconhecer, com fel,

que essa mansa alegoria de ouropel

é criação social bem transparente.

Quantos confundem Papai Noel com Deus!

Também o mostram como Servo Onipotente:

quando um é falso, outro o será também.

E é por isso que muitos são ateus,

por que rezaram por algum presente,

para esse Deus que não é servo de ninguém.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 19/05/2012
Código do texto: T3676199
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