Burka

Aperta-me a melancolia

dessa Burka que visto.

Eu poderia dizer

que Solidão rima

com desejo de não ser

outro, além do que sou.

Mas nada rima

e nem seria uma obra-prima.

Apenas me achariam pedante.

Imaginem só: já é ateu,

comunista, cético e quase

niilista.

E ainda quer ter o privilégio

da falta de companhia... Ora! Ora!

Aonde chegará o velho?

Eu acho que velho

sou o que fiquei

depois que o Tempo passou.

Mas nada responderei,

pois temo que me batam

com o sapato como eu vi

fazendo no asilo, com a

concordância

da nora e do filho.

Melhor ficar quieto

e me ajeitar à Burka,

sonhando que é a Biblioteca

da Urca, onde eu ia menino

para ler escondido o Livro de

São Cipriano, da capa preta,

para o Diabo me aparecer

e comprar minha alma.

O dinheiro daria para fugir

do horror que tudo era;

e pensar que tão pouco

o que eu haveria de querer:

era paz e batata frita com

coca-cola no jantar, como

acontecia com o Sr. Luis

Contador.

Mas que nunca chegaram

porque o dinheiro do pai

ficou na cama da Gessi.

E depois o Tempo trouxe

tantas outras Gessis,

que só agora eu

poderia ter o espaço

vazio que meu sonho

de sozinho queria.

Mas o Diabo chegou tarde

e não quero mais negociar.

Essa Burka que chamam

de câncer já vai me empurrando

de volta para o fosso

em que sempre vivi.