O ROSTO QUE NÃO PUDE VER... (TEXTO)

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"O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por ampla maioria nesta quinta-feira pelo direito ao aborto de fetos anencéfalos, com oito votos a favor e dois contrários".
 
Motivada, talvez pela informação supra mencionada, hoje cedo me vi pensando em você. Pensei com muita tristeza, apesar do tempo que ficou lá atrás, parece que tudo aconteceu no dia de ontem.

Você foi gerada, amada e aguardada igualzinha aos demais, na época os dois que lhe antecederam. Os cuidados com o pré-natal foram os mesmos. Parecia que tudo ia bem. Até que um dia, sem esperar, me vi numa situação bastante difícil, e isso me levou a um estado de estresse e tensão muito grande. Por mais que eu quisesse não me preocupar tanto, pensando exatamente em seu bem estar, não conseguia...

Passaram-se uns 5/6 dias, depois desse acontecimento muito desagradável. Uma tarde, ainda em pleno verão, senti muito frio, e, após esse dia, você não mais se mexia em minha barriga. O que eu não sabia, nem ao menos imaginava era que naquele dia você havia morrido.

Ao perceber que seus movimentos até então "normais", haviam cessado, procurei atendimento médico numa clínica, e duas médicas me atenderam, muito preocupadas porque, apesar das tentativas de auscultar os batimentos cardíacos, as mesmas não conseguiram.

Seu pequenino coração não emitiu nenhum sinal de vida.

Na época ainda não havia serviço de ultrassonografia em minha região. Fui encaminhada para a capital do meu Estado, para realizar o citado exame e ver como você se encontrava. Voltei da clínica para casa, arrasada, mas disposta a me preparar para viajar no dia seguinte.

Mas a natureza (sábia) não esperou. Resolveu poupar meu sofrimento em uma viagem longa, cansativa e sem nenhum proveito, porque já era tarde demais. Durante a noite comecei a sentir contrações, e isso era um sinal visível de que você iria chegar.
Eu ainda esperava que você estivesse viva, afinal não havia realizado nenhum exame clínico que desse um diagnóstico afirmando o contrário.


Fui levada para a maternidade mais próxima, e, para minha surpresa você nasceu de parto normal, e o mais incrível, sem ninguém por perto, sem assistência de médico nem enfermeira. Só depois de você ter vindo ao mundo, e eu esperar alguns longos minutinhos, foi que chegaram apressados (médico e enfermeiras) e com um certo espanto.

No entanto, eu, mesmo pedindo ao médico, não pude ver seu rosto. Ele apenas me disse: "mãe, é uma menina e está morta. E é melhor que você não veja!". Talvez ele  quisesse evitar meu sofrimento maior, de ver sua fisionomia e guardar comigo, seu rosto, não apenas sem vida, mas de um bebê portador de mal formação ou anomalias congênitas, segundo as palavras do profissional que me assistiu. 


Fiquei muito triste, chorei inconsolavelmente. Senti uma "revolta" dentro de mim. A sensação era igual a de quem faz um grande investimento e depois de um certo tempo de espera não obtém nenhum lucro, mas apenas prejuízos.

Enquanto eu vivia essa sensação horrível, ainda na maternidade, fui atendida por uma psicóloga que me informou a possível causa-mortis de minha filhinha. Até aí eu não tinha conhecimento de que você nascera com problemas congênitos, mas apenas que nascera sem vida.


Após essa conversa, aos poucos fui me acalmando e com o tempo, aceitando a triste realidade. Eu estava no 7º mês de gestação. E minha filhinha pesou apenas 1,400 kg.
Ainda guardo a imagem que visualizei pelas costas no momento em que pedia ao médico para ver seu rosto. Lembro dos seus cabelos pretos e bastante lisos (iguais aos meus (na época).


Depois, fui aos poucos entendendo mais ou menos o que aconteceu. E hoje sei que não foi “bom”, mas foi bem melhor assim. Não tive, jamais nenhuma culpa pela má formação de minha filha. E apesar de ter tido 5 filhos, nunca passou pela minha cabeça a ideia de tirar ou interromper a vida de nenhum deles.   

Ainda que eu fosse mãe solteira. Ainda que fosse despejada e não tivesse onde morar, mesmo assim, “mãe-leoa” como penso que sou, essa era a única atitude que jamais eu tomaria. Sou contra o aborto e, nem em caso de anencéfalo eu autorizaria o que considero crime hediondo.

Os médicos, inclusive o dono do hospital, ficaram "intrigados" tentando encontrar uma causa ou explicação para a morte e a mal formação fetal de minha filha.  Ainda me recuperando na maternidade, fui submetida quase a um interrogatório: todos queriam saber se eu usava anticoncepcional, se havia tomado algum medicamento abortivo de farmácia ou mesmo algum chá; se eu havia tido raiva, um grande aborrecimento, etc.

Felizmente, fora o estresse e a aflição que vivi nos dias que antecederam ao parto, eu não tomei sequer um analgésico. Sei que não tive nenhuma culpa pelo que aconteceu. Em casos como esse, a pessoa acaba sofrendo muito mais, porque nunca passa pela nossa cabeça que um dia poderá acontecer com a gente.
Hoje, se estivesse viva, Maria Aparecida Ramos Baracho estaria com 29 anos, possivelmente formada, casada e trabalhando.

Isis Dumont
Fato real, infelizmente.
PS.: Quando você tiver tempo, leia : "Era Deus na Sala de Parto"(pág. 20); fato também real.
Beijossss e meu carinho.



 

 
Aparecida Ramos
Enviado por Aparecida Ramos em 16/04/2012
Reeditado em 11/04/2018
Código do texto: T3615586
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