Coração de vidro
Voltando a me sentir um lixo, como se tudo a minha volta fosse cair sobre minha cabeça, como pequenos borrões cinzas que enfileiram-se um sobre o outro em um holocausto ao deus da solidão...
Voltando a me sentir sozinho, ou apenas querendo me sentir assim, me afastando de tudo o que me faz bem, porque o que me faz bem normalmente me fere, é ruim quando fazem com que eu me sinta bem, pois visto que a maior parte do tempo não consigo me sentir bem nem comigo mesmo, isso tudo machuca muito, um emaranhado de emoções presas a um corpo sem sentido de vida, uma fera presa em um homem obstinado a nunca se sentir bem.
Preso em uma linda camada de culpa, que me leva a não sentir nada, o passado enterrado volta a emergir sobre os viscos que se emaranham sobre meu corpo e entram em minha pele fazendo todo meu corpo trepidar pela ausência do ar.
Sento em meu próprio túmulo admirando o morrer do céu e o nascer da lua, o lindo contato entre vida e morte que banham o céu com um fulgor tão fugaz. É noite eu sei, não apenas no céu, mas em mim, meu corpo volta a submergir no mar dos meus medos e do meu sofrimento - estranho eu sei -, mas é tão bom me sentir assim, é tão bom quando mesmo que por engano faço-me fantoche de mim mesmo e brinco com meus próprios sentimentos - se é que eles existem - e os deixo jogados ao chão enquanto passeio calmamente por um doce pântano, onde o lúgubre nascer do sol afasta as sombras e deixa com que a vida morra diante dos meus olhos, enquanto me distancio em direção ao meu destino incerto.
Deixe-me sozinho só por uma noite, deixe-me sentir o frio me abrigar, deixe-me abraçar a terapia do destino e fechar meus olhos para o mundo que me rodeia.
- Estou com medo, medo de me perder de novo, medo de aceitar essa funesta amargura que se faz tão branda, que me toca de leve a face e enxuga a lágrima que sorrateiramente se abriga em meus olhos.
Sei que depois desta noite terei que partir, para bem longe de todos, de mim e de você, sei que terei que fechar meus olhos o mais forte possivel e esquecer - ou me obrigar esquecer - todos os bons momentos que passei ao teu lado, eu me sinto tão distante, tão vazio, tão sozinho, tão em mim...
Memórias que ferem-me o corpo, deixam rastros sobre minha pele, quebram-me o espelho da alma e partem meu coração em chamas sufocantes que tiram-me o fôlego e enchem meus olhos de lágrimas de sangue.
Sei...
Apenas tenho certeza que sei.
Nada é como deveria ser.
Sentimentos não deveriam existir.
Sinto-me vazio, oco, como um coração de vidro, fechado e cheio de vento, esperando para ser aberto e preenchido por mais vento. Sinto muito, eu sei...
Você me chama de sol, mas não entende que me sinto a lua, oculta no céu até a noite, onde vai ferir os corações dos sofredores, aumentar pouco a pouco a dor que se alastra peito a dentro e morre no papel sob palavras desconhecidas para muitos, entendidas por outros e choradas por outros, mas que sempre morrem no papel, sobre uma linha, sobre o branco, tingindo a luz com escuridão e apagando pouco a pouco os traços da realidade, mas nunca inteiramente a dor.