Permitam-me gritar
Permitam-me ao menos gritar, pois me dói no pé um cravo.
Não um cravo de pétalas, mas de ponta,
Ponta afiada que ao entrar não causou dor:
Ao contrário, pareceu fazer carícias, cócegas...
Tanto que não me dei conta.
Fui pisando e repisando,
Levando para cada vez mais fundo o espinho.
Quando os primeiros sinais de incômodo surgiram,
Alguns me alertaram do perigo de se cultivar um cravo na carne:
Poderia sangrar, inflamar ou, pior, silenciar até a morte...
Mas por quê expor-me à dolorosa extração
Se, quieto, não sangrava?
Inflamar? Talvez, por vezes...
Depois, silenciava novamente...
E acostumei-me ao invasor, afeiçoei-me até,
A ponto de não mais ver nele um intruso.
Os que antes me perguntavam pela dor também se habituaram.
Cessaram as perguntas, não mais havia novidade,
Nada de estranho...
Fazia, definitivamente, parte de mim o meu cravo!
E continuei andando, pisando com o pé ferido.
Nem mais sabia se esquerdo ou direito,
De tanto que incorporei ao meu ser o minúsculo ferrão.
Mas o tempo é implacável:
Cobra o retorno de tudo o que nos apresenta ao longo do caminho,
Mesmo os espinhos com que nos presenteia...
Se não os extraímos no momento em que entram,
Se permitimos que se aprofundem e se instalem,
Tanto pior!
Igualmente profunda será a incisão para sua retirada,
Procedimento inevitável e sem garantias de sucesso...
E ainda me apontam: bem feito!
Quem mandou dar de ombros aos avisos?
Agora, chora...
Calar não seria mais digno?
Engula o pranto, vamos!
Mas, não! – grito em súplica:
Permitam-me ao menos chorar!
Não apenas pela dor de se arrancar um espinho,
Mas pela dor do vazio deixado pelo espinho arrancado...
O sangue que jorra, enquanto se formam as lágrimas...
O nó na garganta que anseia por libertar-se...
Sem palavras, apenas a voz ao vento,
Apenas um grito de dor!
Como se possível fosse transpor o vazio das entranhas para o espaço.
Mas ainda resta a cicatriz,
A áspera marca que o tempo pode amenizar,
Mas nunca apagar.
O fino tecido de outrora jamais se recupera.
A suavidade perdida,
Substituída pelo relevo de duras linhas.
Antes um cravo, agora um calo.
A superfície rugosa que insiste em lembrar a perda.
A amarga palavra “perda”,
Dura feito pedra,
A se fazer notar sob meus passos...
Passos obrigatórios, necessários,
Que buscam outro caminho, quiçá menos acidentado,
Talvez até mais florido, com cravos de pétalas...
Mas que jamais levará ao mesmo destino.
Nunca mais o mesmo cravo, o mesmo espinho,
O mesmo afeto, o mesmo carinho...
Permitam-me, então, ao menos gritar, pois me dói no peito um cravo!
Um cravo que acreditam ter extraído,
Mas que insiste em lacerar-me
Não mais o pé...
E, sim, a alma.