Criatura

I

Por que me escondem os calabouços?

Negro, sou negro

Ave de vulto marginal

Asas negras acompanham o meu vôo

Insípido.

Eu nu, coroado ao meu gosto

Co’as roupas do velho rei

Minotauro me espera na caverna

O mundo olha calado

O minotauro e eu.

II

Aquele velho santo me olha

Co’a cabeça emendada no pescoço

Olha e julga com a cabeça trocada

Ele pensa:

-Quase dez anos...

-Foram quase dez anos.

Eu me calo

O silêncio acusa aquela precisão

Posso olhar ao meu redor

Mas quem saberá?

Alguém saberá dos meus pensamentos

Alguém saberá dos meus maus pensamentos

Alguém saberá que sou mau

Ah! Baixo a cabeça, condenado.

III

Baixo a cabeça e escondo meus olhos

Tenho medo que alguém leia

Através de meus olhos o meu espírito mau

Escondo meus dentes atrás dos lábios

Um sorriso triste se anuncia

Levanto os meus olhos tristes

Sorrio sorriso calado

Minha boca ainda esconde meus dentes

Não a abro

Sorrio assim meu sorriso calado

Tivesse eu garra ao invés de dentes.

IV

Trocaria meus dentes

Se me ofertassem garras

Teria olhos frios

Talvez um olho vazado

Seria assim criatura forte

Após nove anos e meio no deserto

Emergiria de lá homem forte

Armado

Traria gengivas nuas

Teria dois olhos maus

Na ponta de cada dedo, uma garra afiada

Na pele, um suor mal lavado

Um cheiro de urina no saco

Pelo aspecto mau

Pensariam que sou forte

Colocariam pratos de comida aos meus pés

Copos cheios de sangue de cabras imoladas

Rezariam missas em meu nome

Tudo que aplacasse meu ódio.

Eu não diria nada

Um deus nunca responde orações

Teria uma virgem por noite

Em minha cabana.

V

Mas sobrevivi fraco

Magro, pálido e caído

Rastejando como quem perdeu a guerra

E sendo a guerra já perdida

Escondeu.

Perder uma guerra de dez anos

Como Tróia

Cortar fora as próprias pernas

Durante luta feroz

Em meu ombro direito a marca da derrota

Marcado, como o gado é marcado

Com a doce ternura da posse

Andei mais para o leste

Procurando o mar

Encontrei muralhas ao meu redor.

VI

O amor escondeu fundo seus braços

Dentro do meu peito

O amor sorriu para mim

Tem gengivas nuas e mal cheirosas

Tem garras nas pontas dos braços

Tem asas e bicos de corvos

Dependurados no pescoço

Como se fosse um colar

E, fosse como fosse

Eu abracei esse amor...

Era ele mesmo o amor?

VII

Sobre a minha mesa, folhas de papel cartão

Com meu coração desenhado

(Quem reconheceria?)

Vontade de colocá-los no correio

Todos

Todos os meus corações espalhados pelo mundo

Como se o vento os tivessem levado

Todo o mundo seria o meu cronista

De milhares de cronistas espalhados

Como se tivessem todos escapado

De minha escrivaninha.

VIII

Freqüenta a voz fatal do meu algoz?

Uma fumaça de cigarro invade o meu quartel

Sabe onde moro?

Conhece a noite em que estou?

IX

Formigas imaginárias

Freqüentam um prato sujo que repousa

Em meu lugar, sobre a minha cama

Eu, nessa escrivaninha

Desenhando corações em papéis cartão

Estou no lugar errado

Pois a noite se adiantou bastante

Estou no lugar do copo

Um copo que dorme e sonha com formigas

Se eu não estivesse com fome

Eu sonharia também.

Eu vejo o sonho do copo

Eu vejo o copo sonhando.

X

Num mesmo quarto:

Eu, um copo dormindo em meu lugar

E as formigas que o copo sonha.

Emerjo de um sonho assim:

Sedento, alquebrado, procurando a porta

Que dá mais facilmente para a sua casa.

É verdade que um copo sonha em meu lugar?

XI

Procuro a representação mais sonolenta da humanidade

Recordo os dias de sonhos

E algumas solenidades

Imagino um sol de um dia quente

E lembro de seus olhos

Enormes olhos maquiados

Que parecem ainda maiores assim

Lembro da festa em que dançava

Para um número infinito de homens

Rebanhos enormes e criminosos

Que, de repente, se sentem puros

Ao sentar na cama e sonharem com você...

Isso! devo evitar os sonhos

Devo evitar seus olhos

Que o copo sonhe com formigas

Isso é bem menor que o meu sofrimento.

XII

Velozes, dez anos se assentaram sobre mim

A tristeza ergueu paredes

Como se fosse uma casa sem portas

Sem janelas

Ah, tristeza itinerante!

Visita essa casa ainda para ontem

Traga notícias boas de desconhecidos meus

(Sim, isso mesmo, isso tudo que é novidade

De seres que não ocupam demograficamente meus sonhos)

Grande surpresa!

Traga boas novas de pessoas

Que ainda não bateram à minha porta

Que não me pediram sopa

Quero notícias novas de pessoas novas

Que bela surpresa!