A CANÇÃO DE JEAN CHARTÈRS
Os céus espraiam os primeiros alvores da manhã.
Venho de longe... De entre soldados e canhões.
Uma vida esquecida entre máscaras noturnas.
Passos pensados, estendo-me na campina
rumo ao bosque. Gasalho-me do frio nos raios de sol
que iluminam os ciprestes.
O rebanho de ovelhas...
O madrigal de pássaros...
No grande vale de pastos verdes o Solar Chartèrs me espera.
Vincent também.
Theodore, Lambert, Virgine, Marie...
Resplende o céu! Cresce o matinal! Sorvo a manhã...
Eu fui o poeta das bétulas.
Ainda o setim das cortinas esbarra em nós dois e no
tango da noite. Os corpos nos fluídos da névoa, da pele...
Ainda percebo, pregada às curvas da face, uma máscara antiga.
O sabor nos lábios. O perfume que passeia no espírito...
Volto. É de manhã... Meu velado esmero! Um caminhar
maduro, uniforme, pensado...
– As tortuosidades deixaram os
estigmas que levo neste alforje
e marcaram a memória com lembranças brancas.
(...)
Chego.
Revejo o mesmo jardim.
Colho a mesma rosa, o mesmo fruto,
a mesma semente que plantei.
O tempo cuidou das raízes. O tempo foi o patriarca
das vigílias e deixou rastros em mim...
A casa.
O sinete desbotado no entalhe da porta.
Entro.
Desço degraus... (Pasmo!)
Vejo a eternidade dos retratos no sono dos álbuns.
Vejo os sinais pardos dos outonos.
Lá fora, a cantilena débil do cipreste...
Histórias. Contos. Infância. Os ventos
noturnos... Meu olhar na janela, temeroso...
Só os olhos livres da coberta...
( Alma minha!
– Lanterna em busca de vestígios!...)
Lá fora, as árvores guardiãs.
Aqui, o vaso da Lusitânia.
Aqui, a obra do lapidário.
Aqui, as palavras amareladas de minhas remotas poesias...
Por que a poesia se o
caminhar já é tão reto, tão certo,
tão pleno? Se as cores se apagaram em meu olhar?
Se a memória do mundo ficou guardada nas molduras?
Se as portas e as janelas se fecharam?
Se toda sinfonia pereceu na loucura das máquinas
e dos homens?
Se a guerra e o medo ainda permeiam
os sentidos e as cidades? Se as doutrinas mataram os poetas?
Por que a minha poesia se já não descortino auroras
nem crepúsculos? Se o horizonte é chão de cinzas?
Se deixei o derradeiro poema junto ao copo da última taberna?
Paris... Lion... Nantes... (La Resistance...)
Velhos amigos, úmidas trincheiras: Pierre, Lafon, Gilbert,...
Os ferimentos continuam sangrando.
Meus pais, a terra, os vinhedos. O vinho e o tempo...
Jean Chartrès! Jean Chartrès! Cest la vie! Cest la vie!
(Ouço o lamurio do velho Vincent...)
(...)
Subo degraus. Não há herança. Só o perfume...
Nós morremos naquela noite.
( Adieu mon amour. Adieu Sofie...)
Au revoir Virgine! Au revoir Vincent, Lambert, Marie, Theodore… Au revoir!
A porta me oferece o pátio. Chego aos lajedos.
O outono passeia entre os troncos das bétulas.
A capela e as rosas do adro... Camélias... Cravos...
Valerianas sob as murtas...
Eis o portão!
Eis a vereda do bosque!
A vida respira em meu andar...
A vida me leva na aljava do bosque
em direção ao tudo.
Um mago me espera dentro do mundo
com um jogo de cartas. Vou!...
Cest la vie! Cest la vie, Jean Chartrès!
Vou...!
Deixei os rastros antigos. Deixei os vestígios
e escondi meus fantasmas nas sombras
da casa velha.
Sigo sem doutrinas e sem guerra,
sem poesia e sem medo...
Sidnei Garcia Vilches. (11/05/2005)
... duas horas da manhã.