deslembrar

de cada um dos teus disfarces

de cada um dos teus segredos

das fugas, gargalhadas

das mentiras...

aliás, mentir pra quê?

pra quem?

e por que pra mim?

lembra?

eram estranhos aqueles dias

e você lia em minhas entrelinhas

o pavor que já senti de mim

foi da sala que ouviu meu choro

foi do quarto que ouvi o teu

atrás da porta

da borra do café

à cortina esvoaçada

da tela azul da tevê esquecida

às roupas jogadas num canto

tende (ó, Deus) piedade

do que talvez eu nem me lembre

- só que eu lembro -

eclipse oculto de bolso

do "à esquerda na bifurcação"

das 268 mangueiras

do passo apressado de mãos dadas

- filme clichê numa sessão da tarde -

dos dedos entrelaçados

dos cabelos esvoaçantes

de uma alça sempre caída

do cheiro

Deus, como eu lembro do cheiro!

com lenço e sem documento

do caminho e dos descaminhos

de madrugadas dormidas na rede

de carros de som e promessas vazias

justo eu, magro de tudo

sapatos esgarçados

e cabelo embolado

eu só tinha uma história

agora eram tantas outras

e não só sobre o que nos demos,

mas também sobre o que negamos

eu não tava pronto, lembra?

ninguém estava

ainda era cedo

quando tudo era motivo

sem que houvesse motivo algum,

quando você me ensinou

quase tudo que eu sei

e eu me inundei do teu caos

pra esquecer do meu

o contrário também

já era tarde

quando a chuva caiu

e eu me afoguei de nós,

mas sem saber nadar

não dá pra salvar todo mundo

e, no fim, não se salva ninguém

a música tocou outro dia

e o mundo seguiu sem parar pra ouvir

c'est la vie

a vida sempre segue

primeiro você

eu vou logo depois

lembra?