manhã

nessa manhã

densa e pesada

caiam as nuvens, sob espesso

espectro de sol

sol raiado,

rajando o céu de dourado

rasgando o azul com luzes

e orvalho

nessa manhã

diante das pequenas flores amarelas

desesperadas por uma primavera finda

o sol raiava fixamente

em minha memória

sem sombras do esquecimento

o filme interior corria pelas veias,

as emoções escorriam pelos ralos

dos poros.

Suava silenciosamente

Chorava essa manhã

sentanda no meio do quintal,

diante de lembranças inúteis

da menina que fui, da mulher que ainda sou

que ainda existe nas frestas do tempo

os cães percebendo meu momento

se recolheram um a um

num cortejo fúnebre a uma saudade

mas havia todo um dia inteiro

pela frente

diante de meus olhos,

diante de meus punhos,

perto do coração,

longe de meus sonhos.

nessa manhã,

a brisa não refrescava

apenas soprava-me ao ouvido

poemas antigos de Drummond

havia mais poesia naquela manhã

que no mundo inteiro

mais poesia naquele instante

do que em toda eternidade

de rimas,

de estética,

de frases perfeitas para ouvidos moucos

corpos completos para almas ausentes

nessa manhã

a certeza de sobreviver mais um dia

a certeza dos afetos triviais,

acidentais e vividos

sorvidos como numa festa bacante

nua e de prontidão

deitada naquele horizonte,

naquela manhã

preguiçosa e,

que eu insisto em

acordar.

nessa manhã

o dia resumia uma vida.

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 02/01/2008
Código do texto: T799909
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