manhã
nessa manhã
densa e pesada
caiam as nuvens, sob espesso
espectro de sol
sol raiado,
rajando o céu de dourado
rasgando o azul com luzes
e orvalho
nessa manhã
diante das pequenas flores amarelas
desesperadas por uma primavera finda
o sol raiava fixamente
em minha memória
sem sombras do esquecimento
o filme interior corria pelas veias,
as emoções escorriam pelos ralos
dos poros.
Suava silenciosamente
Chorava essa manhã
sentanda no meio do quintal,
diante de lembranças inúteis
da menina que fui, da mulher que ainda sou
que ainda existe nas frestas do tempo
os cães percebendo meu momento
se recolheram um a um
num cortejo fúnebre a uma saudade
mas havia todo um dia inteiro
pela frente
diante de meus olhos,
diante de meus punhos,
perto do coração,
longe de meus sonhos.
nessa manhã,
a brisa não refrescava
apenas soprava-me ao ouvido
poemas antigos de Drummond
havia mais poesia naquela manhã
que no mundo inteiro
mais poesia naquele instante
do que em toda eternidade
de rimas,
de estética,
de frases perfeitas para ouvidos moucos
corpos completos para almas ausentes
nessa manhã
a certeza de sobreviver mais um dia
a certeza dos afetos triviais,
acidentais e vividos
sorvidos como numa festa bacante
nua e de prontidão
deitada naquele horizonte,
naquela manhã
preguiçosa e,
que eu insisto em
acordar.
nessa manhã
o dia resumia uma vida.