Memoriando
Na quietude as asas se ajeitam. Pairam, lúcidas, sobre a face do abismo. Depois cruzam o ar para pousar serenas sobre as pétalas de uma tímida flor. E os sonhos, também os irrealizáveis, se calam aquietados... Se a flor é por si mesma? É flor de amor. Existe para doar-se... assim, assim, flor aprendiz, aos pés do mestre, arraigada e envolta em sua luz...
Despassagens já se foram com o tempo carcomido e absurdo! Ignoro becos sombrios e me inclino ao gesto ínclito que permeou desacertos passados. Quantas vezes acolhi desistências e me refugiei em meus próprios medos? Quantas vezes lancei o olhar em minhas próprias mesmices em busca de me despedir? Hoje, basta-me o silêncio... e que dure o necessário para que eu o seja...
Busco esse sol impalpável na sombra da madrugada. É que meus desertos não se deixam guiar por ampulhetas e ponteiros de relógio. O poema me chama, incendeia a noite em busca de palavras que me expressem... Também quero falar de amor. Mas, quero falar do amor puro. Esse, que me faz amar e seguir amando. Assim, assim, desse jeito que não caibo nem em mim, só no outro. Esse amor que de fato, não aprisiona, faz elos. Que me faz dizer e repetir: amo, amo, amo, amo. Ah! Como amo! Reconhecer esse amor, aceitar, honrar e entregar a quem se ama de forma incondicional é caminho de paz, remanso de luz... Esse amor puro só é possível na aceitação de si mesma, no autorreconhecimento de sentimentos e emoções... Ele só é possível quando deixo de buscar no outro o que não entregava a mim mesma - a completude em divindade e generosidade - e passo a me amar para compreender e apreender a amplitude e a pureza do amor e então saber amar o outro. Quero falar do amor puro. Esse, amplo, profundo, inerente a minha vida em todos os sentidos e direções. Esse, que preenche tudo de forma sublime e perfeita. De modo que sua plenitude absorve, purifica e ilumina de tal forma que me permite ser feliz por ter capacidade de amar... Compartilhar esse amor, para que quem eu amo seja feliz, passa a ser lenitivo de vida... Então... então... quero falar do amor puro...
Quem disse que todas as filosofias caem por terra? Que todas as palavras são elos desprendidos de si mesmos, nada dizem, entre si não se ligam? Sei que há os que lutam para que todas as horas sejam de não-luz... mas o tempo, ah! o tempo. Só é preciso paciência... e aprender a garimpar para encontrar preciosidades. Sim, sim, eu sei que há os que lutam para que todas as horas sejam de não-luz, mas já aprendi a garlar achados e guardar lindas pérolas em minhas buscas de luz...
Mas também vejo as variáveis empíricas que pululam em minha madrugada... vejo as ruas desiguais para o trilhar dos meus pés, às vezes cansados de tanto caminhar... também vejo as flores distintas que me habitam e me fazem assim, assim, imperfeita e incompleta... vejo que o que pensava de mim - minhas teorias sobre minha própria importância - não é de fato o que o outro pensa ou vê em mim... Olho para os mesmos olhos que podem ver no outro tanta beleza, mas não a reconhecem em si... Posso ver a pequenez de meu espírito, as angústias sempre presentes, os medos sempre latentes... então, concluo que as minhas "variáveis empíricas" são muito diferentes das "teorias" (variáveis teóricas) que uma vez eu tinha sobre mim... Os "resultados" apontam caminhos desiguais, flores distintas (desimportantes), perfeitas imperfeições, completa incompletude... a pequenez do meu espírito...
Palavras vertem, puras, da alma de poço... Silêncios se agigantam formando nós na garganta que, imensos, escorregam dos olhos feito massa em movimento. Intensificam o processo criadouro... porque remetem aos sentires mais profundos, às grietas mais densas e inundadas de emoções... Nem tudo pode ser dito, nem tudo pode ser descrito. Por isso, guardo mistérios no coração e me revelo em reticências e linhas em branco, que se nada dizem aos olhos que as procuram, expressam o sentimento que se desenha por baixo da superfície que se pode ver, nas profundezas invisíveis dos pergaminhos interiores...
Viajo absurdos escrevendo e ecoando rascunhos em mim... buscando Vivaldis na ponta dolorida dos dedos, na sangria das cordas de um velho e mágico violino... Sou flor que chora ao ser tocada e enquanto a lágrima me cala de emoção, sou levada pelos acordes que vão escrevendo e ecoando rascunhos em mim...
Às vezes, ainda choro a solidão dos meus voos... Às vezes, ainda não acredito que houve um caminho para a paz... Mas sei que a torrente que me levava para longe cessou suas ondas... e apesar de ter me visto por um tempo em planícies alagadas e chão frágil, ouvi uma voz retomando o que não foi abandonado... Então... vi tua alma ficar em paz ao meu redor e isso, eu sei, não foi uma ilusão... Foi como a luz de um arco-íris selando o encontro de um caminho de serenidade...
Pousas sobre meu ombro, chama profunda, tal qual sombra de quem sabe atravessar um deserto, sim pousas alma aberta em flor, até que se faça o silêncio das sementes. É assim, sendo cuidada para que não me fira, que a primavera floresce, que a fragilidade se esvaneça, meus ramos se fortaleçam e ao meu redor haja perfume... Pousas sobre meu ombro, jardineiro feliz, para que a casca se quebre e os frutos de tua luz se espalhem em mim tal qual o brilho da lua, na noite escura, sobre os olhos embevecidos de belezas...