ENVOLVIMENTO &+

ENVOLVIMENTO I – 3 agosto 2020

BUSQUEI A TI

Nessa impiedade que meu peito assola

Teu corpo sobre o meu flexível mola

SACIANDO A FOME

EU VIA EM TI

Toda a potência ideal do feminino

E desde a adolescência é que me inclino

PARA ESSA ESFERA

EU SÓ QUERIA

Ter junto ao meu teu corpo conquistado

E conservar-me então nele abraçado

ATÉ QUE ACORDE

TODO O PRAZER

Sentindo em ti desde primeiro olhar

Até descrendo que pudesse te beijar

QUANDO QUISESSE

NEM SEI PORQUÊ

Essa minha instância foi tão bem recebida,

Que na tua carne fosse a minha contida

QUANDO QUISESSES

ENVOLVIMENTO II

MAS TE PERDI

Ao veres quebrantei meu juramento

Às cláusulas fugi de nosso assento

EM MEU LUDÍBRIO

MAS JULGARIA

Poder assim mesmo conservar-te

Porém não foi possível enganar-te

TUDO SOUBESTE

POIS DEVERIA

Talvez tudo te negar em falsidade,

Porém tudo admiti com leviandade

DE TI SEGURO

E SEI AGORA

Não há verdade que não seja castigada

Por teu orgulho foi a minha executada

POR TEU DESDÉM

E PERCEBI ENTÃO

Que eras tu somente que eu queria,

Nesse vazio intenso que sentia

DA AUSÊNCIA TUA

ENVOLVIMENTO III

E FUJO A TI

Nessa doçura morna que me expande

Nesse amargor insolúvel, delirante

DE MAL-ESTAR

NÃO TE PROCURO

Por não querer enfrentar teu olhar duro

Quando me sinto, afinal, tão inseguro

DE RETORNAR

APENAS PENSO

Nesse palor que me reclama intenso

De como poderia um som imenso

ENGAIOLAR

TENHO PALAVRAS

Desde o fundo da garganta retinindo

Que teus ouvidos não ficarão ouvindo

PORQUE ME CALO

POIS ENGASGADAS

No meu palato sempre ficarão

Sem serem ditas, porque recearão

OUVIR TEU NÃO

AMOR SEM OSSOS I – 4 AGO 20

um certo dia

em que andava simplesmente a espairecer

parada ante vitrina fui te ver

tão de repente

que algo rasgou-se no meu coração

num assalto repentino de emoção

não esperava

que alguém pudesse ter tanta beleza

mas no debacle da minha incerteza

te conheci

e talvez conheceste o meu reflexo

difuso embora e sem mostrar-te nexo

em tua visão periférica sendo apenas

um vulto de passagem

quais difusos e insensíveis viste tantos

sem nem sequer considerar fonte de prantos

a sombra inútil do meu eu difuso

que apenas ondulava

pelas marés em vibração dessa vidraça

atravessado por carros, tão sem graça

nada lembrando essa que então vi

tão invisível e desimportante

tal qual fosse um gari em seu trabalho

recurvado na sarjeta

e te perdi de permeio ao ato falho

quando iniciaste um novo movimento

quando tentei te tocar nesse momento

que foi apenas meu

AMOR SEM OSSOS II

tentei chamar

inutilmente em tal instante a tua atenção

com a chama fraca deste meu chamado

em som manchado

qual se na voz percutisse algum machado

pois quem procura acha, encontra lenha

talvez não tenha

entre meus dedos nada mais que combustível

não mais que suficiente para a queima

do próprio coração

consumido lentamente em fogo brando

chamei minha pira e afivelei a flama

faltou-me a chama

sem chegar a esquentar-me a refeição

guardei na mão o que restou da erupção

nas bolhas dessa mesma queimadura

e assim queimei

o meu chamado na mesma ignição

que teu nome gravou sobre minha palma

e pelo resto da vida toda a calma

assim me retirou

pois meu chamado foi que me queimou

na paz viril de um suttee em cremação (*)

e vejo apenas que só meu coração

não se desfez

(*) Costume hindu em que a viúva se deitava na pira do marido.

AMOR SEM OSSOS III

mas foste embora

sem ao menos dar sinal de me enxergar,

nem sequer vulto nesse vácuo que lhe traz

a vidraça refletida

ali parei enquanto os transeuntes me empurravam

e talvez de minhas tendências desconfiavam

ao ver-me contemplar

atentamente e com jeito compulsivo

tanto artigo feminino, no pecado permisivo

ofertado a todos os passantes

e de repente se desfez o transe em que sofria

e sem saber se sua figura ainda veria

uma outra vez

girei depressa nos vacilantes calcanhares

a procurar acompanhar os seus passares

da rua ao longo percutindo seu silêncio

mas já lhe dera

demasiado o tempo longo dessa espera,

olhando ausente a imagem que estivera

nessa vitrina que outras ocupavam

busquei a sombra em vão

pela calçada a bater nos que chegavam,

gritando um nome desconhecido me escutavam

e assim violentamente me empurravam

o coração

AS LARVAS DA MUSA I – 5 AGO 2020

cansado de escrever, saí à rua:

no antigo tempo se podia passear,

antes da ordem de se mascarar,

a mais ninguém mostrando a face nua,

qual uma krósis no palco assim flutua

do teatro grego, emoções a indicar

para a plateia, sem mais precisar

o sentimento que assim fácil estua;

com esta máscara perdi todo o prazer

de andar por aí, mesmo sendo transparente,

o seu sufoco a não ser tão aparente,

porém se embaça e mal consigo ver

esses olhos furtivos que me espreitam

e que em abraços já não mais me estreitam.

AS LARVAS DA MUSA II

foi assim que a velha história recordei

que ontem descrevi, tendo o cuidado

de não delimitar em demasiado

nem a bela nem o ponto em que a avistei.

e dessa forma, na praça entreparei,

pela memória viva transpassado,

pelo instante de algures arquivado

nesse olvido carinhoso em que o guardei.

também eu tenho minha Caixa de Pandora,

mas o Titã Epimeteu já acorrentei,

não mais podendo a ninfa bela seduzir;

porém uma de minhas musas, sem demora,

girou-lhe a chave e de impulso me insuflou

quando ao teclado foi gentil me conduzir.

AS LARVAS DA MUSA III

são estranhos artifícios que esta musa

emprega em me manter comprometido,

pois parar de rascunhar já decidido

eu tinha ao ver a ruma tão profusa,

que se alça mais e mais, nessa difusa

maravalha de letras, em verbo puído,

já incapaz de recordar sonho ferido,

a resistir ainda mais que ferro gusa

a meus assaltos; desistir queria ao menos,

até passar a limpo essa muralha

erguida do meu lado, inexpugnável,

em suas ameias de doçuras e venenos...

mas a musa fez-se ouvir, nessa mortalha

de um sonho totalmente indeclinável...