MISTÉRIOS DE INFÂNCIA

(para o Ary Pizarro)

Na década de cinqüenta

o Brasil era ferroviário.

Em cada cidadezinha havia um túnel

de mistérios e de infâncias:

era a estação do trem.

A Maria Fumaça

enroscava-se nos morros e vinha

fungando, furiosa:

“Já te pego, já te mato,

já te faço cumê barro!

Já te pego, já te mato,

já te faço cumê barro!”

No verão, os dormentes escaldantes

eram o telégrafo dos sonhos:

a gente encostava a orelha

só pra ouvir o cochicho

dos “japas” e dos “chinos”.

Lá longe, do outro lado do mundo,

ainda havia o fumo dos dragões

e Hiroshima vociferava o futuro.

À noite, sob as cobertas,

apitos urravam as serpentes do medo.

E silenciavam os soluços.

Do livro OVO DE COLOMBO. Porto Alegre: Alcance, 2005,p. 48.

(Poema republicado. O título anterior era VIDA E SUAS MORTES. A titulação objetiva, mais consentânea com a temática, busca maior interatividade com o público. A virtualidade permite este proceder e ratifica o conceito de que literatura é matéria viva, mutável, portanto.).