O CORPO MORTO DA MINHA MÃE
                                              - para Dalva Maial - minha mãe


 

Não reconheço teu corpo em rigor mortis!
Livores, num emaranhado de púrpuras, inchado e disforme.
Não! Não é o teu corpo,
embora eu veja que teu semblante se assemelhe

àquela que costumava me contar histórias do outro mundo.
Teu colo repousa, enfim!
Da volúpia do desejo ao alento das insones madrugadas aflitas
das nossas febres e asmas.
Esse peito que resistiu a tanta dor, que construiu alicerces de futuro,
o mesmo peito onde eu quis me nutrir, deitar a cabeça e dormir,
dorme agora um sono estranho.
Será sereno? Será nada?
Aprendizado e ensinamento, prazer e dor, conforto e exílio,
corpo que já se multiplicou e foi casulo, aguarda o destino fênix.
Sim, renascer nas cinzas!
Espargir-se em milhares de partículas ao encontro da terra!
Ser espalhada pelos quatro cantos, ao colo da mãe de onde veio.
Olho por um instante o corpo morto da minha mãe
e sinto o mesmo cheiro de flor da minha infância,
o inebriante odor das fragrâncias marcantes.
Vejo o rosto edemaciado e pálido, mas esse não é o seu rosto,
não o dela, que não dispensava um batom e um rouge.
Mesmo austero, tinha magia nas várias faces que ostentava.
Seus cabelos ralos e grisalhos - que por tantos anos a vi pintar,
para estar sempre bela e disposta -
desafiam a morte com um brilho obsceno.
Guerreira sem armadura, na luta por um lugar ao sol,
pelos seus ao sol, se foi num lindo dia de sol, num domingo de missa.
É assustador imaginar o mundo sem minha mãe,
perceber que tudo permanece igual! Como assim?
Árvores com as folhas balançando inconsequentemente?
Ventos levantando displicentemente a saia das flores?
O mar rebeldemente espumando a areia?
O corpo morto da minha mãe guarda todos os mistérios.
Seus beijos, afagos, sonhos e medos, agora uma antiga realidade.
Suas mãos gordinhas, de dedos curtos, das palmadas sem dó
e das curas sem remédio, ungidas de tempo e saudade.
Seus lábios, outrora rubros e exuberantemente carnudos,
exibem um inquietante sorriso monalísico,
em tons violáceos marmóreos.
Seus olhos cerrados, que sempre me enxergaram
e que muitas vezes me falavam o que a boca não ousava,
hoje escondem a disputada luz dos seus quereres.
O corpo morto da minha mãe exala o fim de um circuito oscilante,
uma cordilheira de senões e um lago de afetos profundos,
calmos e incrustados de certezas.
Como num eterno carnaval, sua vida foi trabalho, construção e festa.
Seus frutos a carregam nas artérias e reproduzem sua memória.
O corpo morto da minha mãe será levado pelo tempo,
e a noite o embalará numa mortalha eternamente perfumada de vida.

********