Devaneio

Lembras-te de quando não existíamos?

Lembras-te de quando ainda éramos nada

Paridos pela imaginação

Embrião estéril do pensamento

Lembras-te de quando te fazia sonho e realidade?

Lembras-te de quando a noite nos encontrávamos

Expelidos por desejo ingrato

Exílio fecundo da imaginação

Lembras-te de quando linchávamos um ao outro?

Lembras-te dos pergaminhos que me mostraste

Embriagados pelo tédio de vida vã

Sentinela do suicídio

Lembras-te?

Lembras-te dos doces que não trocamos?

Dos bancos em que não sentamos

Do calor que não sentistes quando não te afaguei as mãos nem te beijei a testa...

Ao menos te lembras dos nossos choros

Na calada noite abraçando a fria madrugada

Madrugada presságio de terror

Ao menos te lembras da hipnose de teus lábios

Feito pragas no auge na minha frustração

Ou do teu olhar traiçoeiro e malandro

Lembras-te?

Das lutas do colégio que não tivemos

Dos colegas chatos que não nos insultaram

Das fantasias que não nos iludiram

Lembras-te?

Deste rosto feito mapa pelo tempo

Que um dia não te fascinou

Desta mão áspera

Que já te acariciou

Lembras-te?

De ti dengosa a desfilar por aquela rua

Soltando pelas ventas o audácia da idade

Tresmalhando desejos e cobiças

Na frugalidade da nossa casa

Lembras-te?

De ti e de mim

Separados na melodia de acordeão

Sentados na bamba da vizinha

Contemplando o muco de um irmão qualquer

Sem nada poder fazer

Como que reféns da eucinesia

Lembras-te?

De nós feitos um só

Na prostituição de nossas mentes imigrantes

Cruzando o frio atlântico desafiando o cárcere

Na imisção abrupta de nossas loucuras

Lembras-te?

Não, não te lembras...