Vestígios

 
Estive pensando : “sou feita de gavetas”
— como disse um poeta— essas tretas
onde guardamos lembranças amassadas.
Sabem esses vestígios doces de infância?
Esses que às vezes nos enchem se ânsia?
Pois elas vivem todas ali guardadas...
 
Vivo fechando-me e me abrindo.
Como hoje — o sol no poente sumindo...
E eu de repente captei o passado
escondido ali naquele recanto...
A velha gameleira parecia um manto
Jogado sobre o velho telhado...
 
Eu achei a cena tão marcante
e de repente me vi infante...
Só assim eu pertencia àquele lugar.
Apesar de tudo eu era ainda menina,
aquela que tomava banho de tina
e que nas cercas vivia a equilibrar...
 
Aquela que comia balas rim tim tim;
que o campo de margaridas era seu jardim
e teve, talvez, uma única boneca.
E mesmo assim já cozinhava feito gente:
arroz, feijão, carne de lata, ovo quente...
E claro, eu tinha o meu lado sapeca...
 
E tinha vestido de bolinha, de chita...
Mas não me lembro de nenhuma fita,
pois sempre tive os cabelos curtos.
Tive casaco de flanela xadrez
e muitos momentos de insensatez.
De choro, de tristeza, esses surtos...
 
Agora vejo essas lembranças dobradas
nessas gavetas já tão emperradas.
Mas acho que nunca me abri tanto
para sentir toda tua textura...
Apesar de tudo não sinto amargura,
apenas saudade molhada de pranto.





( IMAGEM:  da autora, clicada em 23/11/2015 . Meu Recanto de infancia)