Velha

Estou de frente para a janela

Bebericando outro copo de suco

Pois minha alma encarquilhada

Não consegue suportar mais vinho

E posso jurar por todos os meus deuses obsoletos

Que não lembro quando foi que fiquei tão velha

Provavelmente, no dia em que você partiu

E me fez perceber que ninguém jamais poderia me amar

Fiquei só,

Com o peso dos anos e das memórias

E reviro os álbuns empoeirados

Com as mãos enrugadas

Que seu corpo jamais voltarão a tocar

Guardo na mente as lembranças

Embora provavelmente a versão que preservo

Seja muito mais bela que a realidade

Mentiras inocentes de uma mente senil

Pois ninguém mais se lembrará da verdade

Meus cabelos esbranquiçaram

E não foram os únicos a perder a cor

Houve um tempo em que a vida foi brilhante

Mas faz tantos anos

Que parece absurdo levantar da cadeira de balanço

E perseguir um sonho qualquer

Quando todos os ossos doem no primeiro movimento

O copo treme em minhas mãos

Derrubando gotas que caem no chão

Como caíram minhas lágrimas

No dia que acenei-lhe com meu último adeus

Você jamais voltaria, é claro

Mas ninguém conseguiu convencer meu coração

Que envelheceu a cada passo seu

Na direção do irreversível

Da despedida amarga que carregou consigo minha juventude

Eu me lembro, ainda

Mesmo quando todos já se obrigaram a esquecer

Lembro de tudo

Pois foram meus lábios que beijou

Foi minha mão que tocou

Foi a mim que dirigiu as palavras gentis

Que talvez nem fossem tão gentis

Se eu prestasse atenção em algo além de seus olhos

E compreendesse a verdade

Queria dizer que compreendo agora

Queria dizer que os anos me fizeram sábia

Mas os anos apenas prensaram a dor

Mais fundo em meu coração despedaçado

Eu sentei nessa mesma varanda

Todas as noites

Esperando que você olhasse para a mesma lua

Mas o tempo varre os clichês

E os deuses deixam de ouvir palavras desgastadas

De tanto repetir pedidos impossíveis

O tempo apenas me deixou mais velha

Arrancou-me a cor, a força e a saúde

E a única coisa que deveria ter levado

A única coisa que deveria ter curado

Deixará que leve comigo até o fim

Até o momento em que ouvirão o vidro se espatifar

E verão meus olhos se fecharem

Enfim livre das velhas memórias

Que tempo nenhum foi capaz de apagar