Poeminha da saudade antiga
Despi as nuvens desse dia só para te ver melhor.
A canção rebatida na nuca, os olhos contornados de azul.
Na intenção de ser céu, abri a boca para as gotas de chuva.
Entendi o amanhecer como quem compreende o nascimento da primeira cria.
Esqueci-me da dor.
No parto prematuro do dia, o choro da fome abortada mereceu ser silenciado pelo riso das moças virgens e expostas nas sacadas.
Catei o que me davas, a cada chegada, sentindo o frio da partida a me entrelaçar.
No jardim secreto das flores preferidas, fiz um cafuné de amor na aura da nossa melhor lembrança.
Sorri sorrateira como quem rouba batons de chocolate e finge adolescer.
Não entendo boa parte das coisas, mas o que resta me importa solenemente.
Na tarde sombreada e radiante da quimera, senti que éramos o que de fato podíamos ser.
Nunca mais um toque.
Nunca mais o chão a sustentar teus pés.
Apenas cenas cortadas e postas sobre a mesa do jantar.
O gosto do vinho enrubesceu a face do amor embriagado.
Criamos a vida em mundos separados.
Nenhuma rua nos separa, mas nenhum caminho nos faz encontrar.
Guardei teu cheiro na madrugada dos becos sem saída e a tua voz, rouca e trisque, coloquei no varal para quarar.
Tudo isso, enquanto os pássaros divinizados da saudade anunciavam o dia antes que a noite pudesse terminar.
Nua do ressentimento da perda, senti o beijo pedindo para ser roubado.
Levaste quase tudo.
Menos a pena leve das palavras a caçoar dos ouvidos tolos do acreditar.