CENÁRIO QUASE DESMEMORIADO
Cordas retesadas de meu coração menino,
a infância é um carro-de-boi
rangendo nos grotões agrestes.
Férias de julho, entre o Monte Bonito e o Gama.
Dias antes do Getúlio “sair da vida pra entrar
na História”. E o cenário era Pelotas, tios e avós.
Dona Amélia Silveira, matriarca, era uma
fada dark, mística em seu longo vestido negro.
Viuvez plena de saudades, filhos e netos.
Meus medos eram tantos que ficaram
naqueles distantes ermos.
Alguns tinham nome: o cemitério, o açude fundo
e as abelhas nas frinchas do galpão.
Ainda zunem em meus ouvidos o mel
e as águas passadas.
A infância é o pilão picando o milho,
o bolo cheiroso e as letrinhas na sopa
de Ana Silveira, professora de família.
Jovelino e Hilário derrubavam pedras
com clavas e dinamite.
Ajudavam a encher fartos celeiros,
veias por onde o sangue fluía para a cidade
em seus caminhões Ford.
Tudo era bonito neste quase desmemoriado tempo.
Nele enterrei os totens da esperança futura,
entre malmequeres, patas de cavalos,
o jogo de osso e o medo do escuro.
- Do livro A BABA DAS VIVÊNCIAS, 2003/13.
http://www.recantodasletras.com.br/poesiasdesaudade/41814