A FREIRA (Convento) & MAIS
CONVENTO
Ela chegou aos caixilhos da vidraça,
apagando seu rosto, na condensação
dos sopros contra o dia, sem a mão
erguer para secar a bruma escassa.
Nesse encobrir das árvores da praça,
pois lhe bastava a periférica visão
com que enxergava os outros e que, então,
mostrava um mundo de lisura baça.
Marcado pela chuva acinzentada,
menos cinzenta porém que o pensamento
de rever o seu rosto amargurado.
E assim permaneceu, face ocultada,
enquanto caía a chuva e o vento lento,
lavando sonho após sonho mal sonhado.
CONFORMADOR
Eu não sou eu: cansei de dizer isso.
Eu sou o que a musa quer, mero instrumento
das vozes mudas, cujo pensamento
só pode vir à tona no castiço
formato do soneto, em que as abrigo.
Essas vozes caladas, sem laringe,
cujos sussurros o coração me atinge,
enquanto interpretá-las eu consigo.
Sou porta-voz dos mortos, voz escura.
Sou trovador das almas submersas.
Sou profeta dos espíritos dolentes.
Não sou poeta, sou relator da agrura
dos afogados nas vastidões dispersas,
na mágoa antiga das línguas impotentes.
PRESSAGO
Procuram, sem vontade de encontrar,
as marcas da velhice pelo espelho
as velhas virgens, no seu dealbar
[e se consolam, porque o espelho é velho].
Procuram, sem vontade de encontrar,
antigos pretendentes, bem casados,
ou separados, mas sem as desejar
[amores velhos, perdidos, dissipados].
E só lhes restam velhas companheiras,
os filhos dos irmãos, a mãe anciã,
[que até mesmo seu trabalho aposentaram].
Nessa aflição das horas corriqueiras,
[temendo a luz que traz cada manhã],
ao ver as rugas que as noites lhes deixaram.
CANTO INDECISO XVI
Ganhei três beijos hoje de uma aluna,
que se tornou assim filha postiça...
Pois nos queremos bem, não me enfeitiça,
nem eu a ela: somos só amigos...
Mas embarcamos nessa mesma escuna,
que nos conduz a um mar desconhecido...
Aos vezos do destino mal contido,
nos tsunamis de meus ideais antigos...
Foram beijos casuais, no corredor,
como é costume hoje tão freqüente...
Mas sempre evito qualquer intimidade
e assim me surpreendi por seu calor...
Pela atitude pura, decorrente
de quem me mostra simples amizade...
CANTO INDECISO XVII
E o que fazer quando de mim se adona
essa tão inesperada inspiração?
Coloco as runas junto ao coração
e escrevo as linhas que o ardor me entona.
Assim, sem mais pensar, tais como vêm,
esses versos corridos de meu pasmo
perante o mundo, ou fuga do marasmo
que os outros prende, mas que me entretém.
[Somente de passagem, que ainda encaro
a gente a meu redor, toda a paisagem,
com as mesmas surpresas de menino...]
E vejo assim, nas coisas que deparo,
novo motivo, nova luz, mensagem,
qual bimbalhar dolente do destino...
INVESTIDA
Tenho de dar um jeito dessa pilha
diminuir de rascunhos de sonetos,
que já se atrasam meses, indiscretos,
os pensamentos que minha mente trilha.
São vinte por semana, às vezes mais..
E, se deixasse, muito mais seriam:
se as comportas abrisse, vazariam
mil vozes roucas, um canto que jamais
teria tempo de colocar em livros...
Que outros reúnam versos meus dispersos,
se os quiserem imprimir ou publicar!...
Porque eu não posso amealhar em crivos
quaisquer disposições de tão diversos
retalhos d'alma que vivo a gotejar.
PLATITUDES
A maioria das pessoas só se enquadra
em vinte tipos básicos, mas foge
às classificações em que se aloje...
E a possibilidade se requadra
em cada pequeno detalhe inesperado.
Não há duas iguais e todas são,
lá no fundo, reflexo e afeição
daquilo com que a vida as tem rodeado...
Mas, de modo geral, sempre é possível
prever quem age com mesquinharia
ou perceber quando há generosidade.
Se bem que. em todo generoso, é discernível
um laivo de mesquinho e que haveria
no mais mesquinho, um traço de bondade.
O FERREIRO DA ABADIA
Uns são eróticos, outros filosóficos,
não se contentam em serem só poéticos...
Alguns descrevem os ideais mais éticos,
outros, arcanos de laivos teosóficos...
Existem mesmo os que são tão só estéticos,
outros desvendam os mistérios órficos...
Outros ainda, a tal ponto metamórficos,
que fogem a quaisquer rasgos assépticos.
São gritos da alma humana em mim contida.
As vozes ancestrais em minha guarida,
as incertezas que vejo a meu redor...
Quando se infunde em mágoa o coração,
que tão fácil se expõe, nesse pendor
de esmigalhar mil pedaços de ilusão.
TRANSUDAÇÃO
Gosto de ver os versos que outros fazem,
para fazer melhores, sem vaidade.
Porque sei que a espontânea qualidade
é intrínseca aos meus, quando proagem..
Seja o estímulo menor que àquela atinja,
vindo de fora, em cordas de paixão,
nas harmônicas cesuras da aflição,
ou a cada tecla que tocar se finja...
Mas me ponho a pensar qual seja o preço
que pagarei, a troco da euforia,
que no espírito alheio assim desperto.
Que os sentimentos que a cantar me apresso
representam, afinal, lenta agonia
de um coração que acabará deserto...
BUFARINHEIROS [ambulantes]
Uma urdefesa é o servo onipotente,
que trazes desde o berço quando choras.
A mãe, a avó, a irmã, em quaisquer horas
vêm socorrer-te, em seu amor potente.
É uma defesa primitiva, essa.
As gentes crescem, mas ainda julgam
que suas preces aos santos lhes promulgam
a obediência e que a graça desça...
Pois lhes solicitaram e põem nessas
repetições constantes de seus cantos
a mesma fé nos deuses dos antigos.
Que coisa humana!... Como se promessas
iludissem os deuses... ou aos santos
e, em razão delas, se tornassem teus amigos.
A FILHA DE APOLLO XVII
Eu poderia retomar, antes da aurora,
na cadência dolente da elegia,
o meigo relatar dessa agonia
que se dissipa em matutina hora.
É que, nas madrugadas, fico só,
quando ninguém consegue me magoar,
por mais que tente. Eu passo a trabalhar
e assim me esqueço dessa dura mó
que esmaga meus desejos. Uma poeira
de estrelas cegas, que nem cintilar
já lembram como é. Fico esquecido
da ingratidão da sombra derradeira,
que meus passos cobriu de negrejar
e mal escuto meu coração ferido.
A FILHA DE APOLLO XVIII
Durante o dia é quando encontro a mágoa
das promessas sugeridas... Num piscar
de olhos melífluos, de olhos rasos d'água,
de olhos velados, de olhos de lagar...
Olhos de sangue, olhos surdissedentos,
olhos de entrega, tantos olhos mudos,
olhos sonoros, cem olhos violentos,
olhos que chispam num fulgor de escudos...
E é então que me endureço e refugio
no fundo de meus olhos de murmúrios,
meus próprios olhos imersos nos espúrios
ocultares de desejo e expectação...
E assim conservo, em vão, todo o meu brio,
enquanto deixo esfacelar-me o coração.