DEVANEIO & MAIS

DEVANEIO

Seria tão bacana que os sonhos esquecidos,

Meus sonhos de menino, pudessem retornar:

Que todos, a uma voz, pudessem ressonar

Os ecos moribundos de meus ideais perdidos.

Seria tão bonito, se os sonhos olvidados,

Que a vida cruelmente em arcas resguardou,

Volvessem realidade: os olhos que se amou,

Os beijos irreais e abraços não gozados...

Que a cada amargurante centelha da memória

Correspondesse a luz de uma visão sutil,

Que amenizasse enfim, do modo mais gentil,

A quimera fugaz, em vastidão de glória;

Tarjando de emoção o tédio que sentia

E enchendo a vida assim, no arpejo da Magia.

SUSPIRO

Pois esta noite, como a luz falhasse,

Por vez primeira, pude te enxergar.

Foi tão estranho!... assim te contemplasse,

À luz da flauta, em olhos de luar...

Visão tão doce --- como se beijasse

O som-murmúrio que provém de ti.

Foi tão estranho!... que a luz me faltasse

Por que eu pudesse ver-te como vi...

A alma isolada, em bálsamo de classe,

Soprando na penumbra, assim me ungiste

O coração, no mais sagrado enlace.

Com gestos de veludo me bruniste...

Foi tão estranho!... que eu te contemplasse,

No som quebrado de uma flauta triste!...

So that not all be thought of as spiritual,

ORGANISMO

Se eu comparar poesia à minha bexiga,

Te causarei um choque, cara ouvinte?

Esquece, pois, o choque, mas pressinte

Que símile mais clara eu não consiga.

Pois para mim é assim: uma pressão,

Que se acumula desde o baixo ventre;

Premendo o diafragma, se adentre

Aos domínios sacrais do coração...

Que já, numa explosão, ruge de afeto,

E sai a maquinar novo soneto

E para isso engaja olhar e mão;

E o verso se derrama, multifário,

Qual ouro líquido no vaso sanitário:

E o corpo inteiro torna-se emoção!

SONETO DUPLO

FERMENTO / AGUIAR

Eu tenho amor por toda a humanidade,

Ridículo que eu seja tão igual

Amor puro e total e sem remédio.

E seja tido assim por diferente...

Nunca me perco a trescalar de tédio,

Que neste meu viver tão descontente

Mesmo que seja insensata e sem bondade.

Eu seja tido assim por irreal...

Eu amo a humanidade por egoísmo,

Risível que eu deseje tão mortal

Porque é minha raça, o pão de que brotei;

E transitório ideal indiferente,

E, se da taça o vinho abeberei,

Que todos mais almejam, sem frequente

Herdei tanto ambição quanto altruísmo.

Discutir interior, nessa frugal

Porque, em meu corpo, eu amo a forma humana

Hesitação austera e zombeteira

E, se tivera a escolher, não hesitara:

Que irá de perseguir-me, derradeira,

Que perecessem todas outras raças,

Até o momento da libertação.

Mas perdurasse a raça desumana,

Quando eu puder, nas asas da alvorada,

Que, no prazer de redobrar suas massas,

Galgar as nuvens, águia transformada,

Todas demais espécies maltratara.

Pelo meu próprio rufar do coração.

STRIDER

His Indian girl left, old farm hand's ration

Is barn-sleeping, under a sheepskin;

The rustling mane his only consolation,

Bitter green "mate" now his next of kin...

When he remembers his young girl's breasts,

His guitar curves now his only affection,

Along the roads every night he rests,

Frostbite coming to warm his dejection...

His only land is granted him by death,

In a shallow grave not a cross shall mark;

But if this fertile dung the rain soaks,

His strong laughter o'er the country breaks,

The brave man regaining now his breath:

His heart expanded, like a patriarch's!...

English version on Jan 02, '06. Here you go the original in Portuguese, from 1979:

ANDEJO

Tropeiro velho, que deixou da china,

Dorme em pelego, ao canto do galpão:

Tem por consolo a farfalhante crina

E o amargo verde de seu chimarrão...

Quando recorda os peitos da menina,

Só toca as curvas do seu violão

E nas quebradas passa a triste sina:

Calor de geada é o poncho do peão!...

Só tem querência quando encontra a morte,

Na cova rasa que uma cruz nem marca;

Mas, se o fértil esterco a chuva encharca,

Cintila sobre o pago um riso forte,

Do taura que triunfa sobre a morte:

Seu coração se expande -- e é patriarca!

EPÍLOGO

Muita vez, ao lembrarmos do passado,

queremos renovar as alegrias,

perdidas nas canções e nas poesias,

que encontramos em cofre bem guardado...

Como se fosse possível reacendê-las!...

Do fogo a chama a rebrilhar rutila,

da flor a sombra ao perpassar cintila,

do amor a mágoa de poder revê-las...

Mas não sofremos tal mágoa já sofrida:

é novo o fogo no velho sentimento;

da flor recorda a sombra o coração...

Pois a alegria que lembramos tida,

pertenceria apenas ao momento,

durante o qual entoamos a canção...

(de novo, uma versão em inglês / Again, the English version, from Jan 03, 2006.)

EPILOGUE

Oftentimes, when the past we remember,

we wish we could the aged joys renew,

lost within songs and poems tender,

well kept and locked in old chests askew...

As if the rekindling were thus possible!...

From fire the flame flashingly sparkles,

From flowers the shadow passingly twinkles,

From love the bruise alone to render visible...

Never were suffered twice the bruises love brought:

'tis new the fire of latter feeling,

the heart alone the flower shade remembers...

For that gladness reminded in our thought,

belongs only to the cold embers

of old moments engaged in song trilling!...

DONS GRATUITOS

Existe algum motivo que os deuses adorados

Pelos humanos fossem, se a vida fosse eterna?

Por que madura o óvulo no ventre de uma terna

Donzela adolescente, senão por consagrados

Ideais reprodutivos, que a deusa biologia

Um só espermatozóide escolhe preservar,

Enquanto a multidão condena a ressecar,

Por que somente um se funda e, em sintonia,

Produzam nova vida estuante de esperança?

Enquanto a mesma vida recamam de estertores

Esses deuses solertes, que nos atribularam

Com pragas e desditas, rigor que não descansa...

Os deuses são sagazes. Pois só nos dão as dores

Por que sejamos gratos, depois que nos passarem.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 08/06/2011
Código do texto: T3020874
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