HASTES DE MUSGO & MAIS
HASTES DE MUSGO I (4 abr 11)
Quando teus lábios meigamente beijo,
cresce a maré por toda a minha boca.
As ondas se acumulam e me espoca
o trovejar cintilante desse ensejo,
que me percorre o corpo e então eu vejo,
no maremoto da esperança louca,
a inundação que a alma inteira toca
e meu egoísmo inteiramente aleijo.
Eu deixo de ser eu na tempestade
que me escorre pelo braço até os dedos,
que me desce pelo tronco em enxurrada.
Eu me transformo em ti na saciedade,
enquanto bebo a um por vez, os teus segredos
e enquanto eu mesmo me derreto em nada.
HASTES DE MUSGO II
Mas sabes bem a forma com agiste
e ainda ages, por mais que digas não.
Toda mulher manipula o coração
de quem a ama, tal como consiste
a própria tessitura da ilusão,
essa trama de prata com que urdiste
essa falsa esperança que persiste,
mais forte ainda por tanta negação.
Houve momentos de glória e de estultícia
que me fizeste vivenciar nessa odisseia,
minhas naves enfunadas por bisonhos
ventos, a esconder tanta malícia,
no fervor indiferente dessa teia
que presidiu a hecatombe de meus sonhos.
HASTES DE MUSGO III
Mas o gosto de teus lábios na memória
ainda guardo, em toque permanente.
De certo modo, ainda estás presente,
por mais que eu saiba tão só ser ilusória
a tua presença, fragrância desultória
em minha lembrança, mas remanescente;
em minha boca, meus lábios, cada dente
traz o ressaibo de tal sombra incorpórea.
Pois foste apenas um sonho de passagem,
alimentando assim a tua vaidade,
enquanto eu totalmente me entregava,
bebendo areia, como água de miragem:
quimera a prejulgar realidade
em mil caprichos que tão mal interpretava.
HASTES DE MUSGO IV
Foram hastes de musgo, só visíveis
quando se olha firmemente e bem de perto.
O teu amor precisava ser desperto
e observado em cuidado imperecível.
Mas colocaste barreira intransponível:
só me querias ver quando deserto
teu coração, a outrem sempre aberto,
se achava das presenças disponíveis...
E como te furtaste a tal ensejo,
voltada a interesses que se alternem,
trocados sempre com vivacidade!...
Macio o musgo, meigo como um beijo;
mas suas hastes só com esforço se discernem,
no latejar consensual da intimidade...
PASSAMANARIA I (5 abr 11)
Quando chegou, consigo trouxe o sol
e, na penumbra noturna desse outono,
as plagas percorreu de todo o sono,
aclimatado em gorjeios de arrebol.
Quando chegou, seus olhos de farol
brilharam na canção que ainda entono,
seu corpo inteiro do meu tornou-se dono
e derreteu-me como o ouro no crisol.
Mas quando pálida brotava a madrugada,
deixou os meus lençóis, já satisfeita,
vestiu-se e, de apressada, me abraçou.
E sem olhar atrás, desceu a escada.
E enquanto o Sol todo o horizonte azeita,
meu próprio sol no quarto se apagou.
PASSAMANARIA II
Horas depois, acordando estremunhado,
só encontrei os cabelos que esquecera
no travesseiro e à minha cabeceira,
como evidência de não ter sonhado...
Guardei esses cabelos com cuidado,
(apenas fios reluzentes concedera,
nos filamentos da vida que se esgueira),
depois de tê-los pelos lábios perpassado.
E até o ponto em que a memória alcança,
entre as páginas da Bíblia conservados,
foram minha prece e minha religião.
Houve outras ocasiões da antiga dança,
mas esses fios ficaram consagrados,
como as franjas de uma estola de paixão.
PASSAMANARIA III
Ela passou por mim, pois tudo passa:
seguiu os seus caminhos, devagar,
porém segura e sem olhar atrás.
Dentro da alma deixou marca de traça.
Mas da primeira noite a pura graça
ainda me acompanha, a sussurrar
recordações que só a saudade traz,
na calidez que ainda me encompassa.
E quando eu abro a Bíblia, por motivo
qualquer e nela faço uma leitura,
abrem-se as páginas em que guardei os fios
e tudo então me retorna, redivivo,
da liturgia a comunhão mais pura,
no sacramento de meus antigos cios.
JARRÃO DE PIRILAMPOS I (4 abr 11)
Os vagalumes são guardados numa jarra,
observados por meninos fascinados.
Eles brilham ainda, capturados
talvez por rede ou por humana garra.
É apenas a tampa que os amarra,
mas se tentam escapar, esperançados,
pelas mãos dos meninos empurrados
são novamente para sua masmorra.
E ali brilham, quais gnomos encantados,
em seu inútil movimento circular,
batendo contra os vidros da prisão,
enquanto os carcereiros desalmados
nem percebem, nesse louco voejar
o sofrimento dessa humilhação.
JARRÃO DE PIRILAMPOS II
E caso o percebessem, que fariam?
Os orientais prendiam em gaiolas
ditas luciérnagas e buscavam pô-las
em suas choupanas, que iluminariam
dessa luz intermitente que proviam:
fosforescência brotada de suas colas,
prisioneiros sem culpa, pombas-rolas
acorrentadas aos pombais em que viviam.
Esses meninos possuem eletricidade
no conforto das próprias residências,
mas no fascínio de tal curiosidade,
observam com prazer essa impaciência
dos pirilampos, em sua incandescência,
no desgastar de sua vitalidade...
JARRÃO DE PIRILAMPOS III
Porque eles morrerão, bem certamente,
emitindo esse verdor de confusão
ou o amarelo inútil da paixão,
pois não podem circular, em tal pungente
calabouço de mágoa transparente,
cada gota de luz um coração.
E desse código morse a interrupção
cada convite revoga permanente.
Mas iluminam os rostos dos meninos,
em seu fulgor transitório e amarelado:
olhos castanhos também intermitentes,
nessas jovens feições, os traços finos,
um a um, perfeitamente destacado
pela morte dos cativos inocentes.
JARRÃO DE PIRILAMPOS IV
E inocentes também são de crueldade
esses meninos que só querem distrair-se,
vendo essas luzes, seus olhos a nutrir-se,
na transitória refeição da eternidade.
Quiçá outras crianças, na verdade,
buscando sem maldade divertir-se,
mantêm os dois meninos, no impedir-se
que seus sonhos se façam realidade.
E assim vivemos nós, sob redomas,
julgando divisar na transparência
de vidro dessas jaulas, realidade,
até cairmos prostrados pelas comas
de nossa vida ao final da decadência,
sem jamais encontrarmos liberdade.