ESQUIVANÇA I-XII
ESQUIVANÇA I
Ai, como agora quisera fosse antes!
Não que então melhor fosse, mas bonança
pressentida, tingida de esperança,
corria por meus olhos, cintilantes
de pejo e de desejo, em esfuziantes
conotações de vinda e de chegança,
ao invés de ausências... Ai, como me cansa
esse viver em tais lembranças dantes!
Essa esperança de viver na espera ,
espera cega de viver plural,
plural inútil, longo festival
na mesa do banquete, quem me dera!...
Pois, na espera da quimera do alimento,
me assento só, na espera do sustento...
ESQUIVANÇA II
São apenas padrões, velhos, sensíveis
rotas de fuga, artérias, tão somente:
apenas vibrações que mal se sente,
enquanto vibra o mal... Incompatíveis
com os pendores de ouro... Imarcessíveis,
deletérias visões em que, presente,
se encontra o olhar do cego, pertinente
tão só às mágoas velhas e imperdíveis...
Nada mais que padrões, vibratilmente
a repetir-se em mimas, ao redor,
padrões de azul e ardor, padrões de sol
conservados ao luar, tão sutilmente,
que os próprios padrões se enleiam; dor
padronizada nas linhas do arrebol.
ESQUIVANÇA III
Sempre se quer viver pelo passado,
no tempo que se pense alcandorado,
no tempo que se lembre de encantado,
por menos que, de fato, o tenha sido...
Sempre se encara a ampulheta do presente
tal como se essa areia permanente
nos fosse... Transitória e indiferente,
como é casual o vento; e o sol, perdido.
Já eu prefiro aguardar pelo futuro,
qualquer que seja a projeção no muro,
a vida encaro com grande ceticismo...
E embora saiba retornar não possa,
a expectativa sempre me remoça,
envolto ainda em laivos de otimismo...
ESQUIVANÇA IV
Mesmo assim, eu queria reviver
cada noite em que estiveste nos meus braços,
rememorar os teus esquivos traços,
que já não mais consigo perceber.
Queria ainda teus lábios conhecer
na epiderme dos meus; e teus abraços
receber outra vez: nos olhos baços
pela paixão, de novo me perder.
Não que eu espere me estejas no futuro
de forma igual que te esquivas no presente
e sei que até a memória demudou-se.
Mas a cada devaneio em quarto escuro
meus olhos recompõem o sol nascente
de quando a mim teu corpo desnudou-se.
ESQUIVANÇA V
Melhor seria reviver o meu futuro,
remoto embora: que encontre amor de fada,
alma num corpo de mulher transmogrifada,
diverso de um presente tão escuro.
Que não seja o futuro assim tão duro,
mas móvel de esperança aveludada,
de escolha em diapasão acarminada,
do carma ressaltado em canto puro.
O passado se foi e tua nudez
foi recoberta por mantos de luar,
foi resguardada pela luz solar,
foi defendida por trajos de altivez,
enquanto eu fico apenas a estiolar,
meu sangue surdo aos gritos da mudez.
ESQUIVANÇA VI
No futuro, foste minha e não esquiva,
flor pardacenta em meio ao pantanal
brumoso de um passado sem fanal,
mimosa flor que por amor se ativa...
No futuro, eu também fui a luz furtiva,
com que te iluminei em cor total,
tiveste entre meus braços carnaval,
nunca encontrado enquanto foste viva...
Ao morrer do passado, há esperança
de vida num futuro inconsequente,
desalgemado o líquido presente,
quebrados os grilhões da temperança,
que te afastou de mim o coração,
nesse passado previsto de antemão...
ESQUIVANÇA VII
Este presente é fruto da esquivança:
presente esquivo, muito mais que o vento,
presente inatingível do momento,
intangível presente sem tardança,
pois tanto escorre, como não se cansa,
esse transiente instante de portento,
como se escoa a luz do sentimento,
se não for alimentado por bonança...
Não há presente, é certo: ele é metade
o que "já foi", metade o que "será"
e nada resta, portanto, para o "é",
senão esta fronteira de inverdade,
que nos parece concreta, mas está
nessa interface que do "antes" vai ao "até".
ESQUIVANÇA VIII
Esquiva essa esquisita permanência
da passagem transitória de um instante:
a gente pensa prender, por um relance,
esse momento que passa em violência,
no côncavo da mão, do beijo a essência,
do sexo o clarão, do orgasmo o guante
ou essa comunhão que nos alcance
conhecimento pleno da vivência
de quem nos marcha ao lado, a companheira
da alma... mesmo que sexo não soe,
nos tange o coração, em grã plangência;
porém não se conserva a derradeira
porção de amor na fonte que se escoe:
só conseguimos precipitar-lhe a urgência...
ESQUIVANÇA IX
O cérebro e a justiça, em alternância,
cobram de mim. Quem me alimenta
é o cérebro. A justiça se contenta
em retirar de mim, viva ganância,
impostos e prejuízos desde a infância,
com o mesmo desdém que sempre enfrenta
ao povo... Pelas taxas que acalenta
e nos extorque com real constância.
Acho que é justo que o cérebro reponha
quanto a injustiça tira, sem piedade
e assim crie a justiça pela mente...
Porque justiça é tão só o que se sonha,
na ausência de uma afronta ou crueldade,
que se interpreta como permanente.
ESQUIVANÇA X
Sejam portanto da mente essas respostas
para o momento esquivo que se escoa:
para o futuro, a que toda vida voa,
todo o seu fardo carregado às costas.
Para o futuro as coisas que mais gostas
e as que mais detestas, a hora boa
e toda humilhação que a mente roa,
são transportadas pela vida e expostas.
Mas também o futuro se acumula
sobre o passado: camadas de memória
que revestem o lembrar prevalecente
e, pouco a pouco, essa memória pula
e então reforma de nossa mente a história,
numa bola de neve opalescente...
ESQUIVANÇA XI
Furtivamente, te procuro nos meus sonhos:
não te podes esquivar, quando te abraço;
o sonho é meu e seu roteiro traço,
onde os beijos são completos e bisonhos.
Porém neles teus olhares são tristonhos:
que te trouxe cativa a meu espaço;
ante minha ânsia, o teu ardor é baço
e teus sorrisos falsos são medonhos...
E assim, te deixo ir... E só contemplo
a sombra esmaecida, sem desejo...
Vou a teus sonhos e busco o teu portão.
Se então o abrires, sagrado como um templo,
na religião do mais sincero beijo,
sonharás com meu vulto em tua ilusão.
ESQUIVANÇA XII
Pois é somente se me acolhes em teu sonho
que a esquivança inteira se dissipa
e para o amor teu seio inteiro equipa,
nessa acolhida a que logo me disponho.
Nesse mundo irreal só me reponho,
que nem sequer é meu: estranha pipa
do vinho de tua mente, trave e ripa
da moradia ideal, em que componho
meu ser inteiro e meus ideais desfeitos.
Nessa ilusão do mais concreto arco-íris
de teu sonhar nem buscas mais fugir...
Pois me recebes, com todos meus defeitos,
na madrepérola da teia que me urdires,
sem nunca mais minha ausência permitir.