LÂMINAS DE VIDRO I-XII
LÂMINAS DE VIDRO I (23 JUN 2010)
Vão-se os anéis, porém ficam os dedos;
os dedos vão-se, ficam os retratos:
no sépia aveludado, quais os fatos
assim mostrados por trás de rostos ledos?
São rostos sérios,
fisionomias
de antigas vias,
velhos impérios
desses mortos silenciosos e pacatos,
que nos enfrentam com seus mil segredos,
quais seriam seus sucessos, quais os medos,
nessas fotos mostrados sem recatos?
LÂMINAS DE VIDRO II
Na esperança de um parecer casual,
eles evitam olhar a objetiva,
mas a paisagem pintada nos motiva
a perceber como é pouco natural
esse momento
de conversa muda,
em que se estuda,
de olhar atento,
esse jornal com gravura que cativa...
O que "O Espelho" nos mostrará, afinal?
E a palha desses vimes, tão banal,
mais que os humanos, dá impressão de viva...
LÂMINAS DE VIDRO III
Os rostos sérios, voltados ao futuro,
eles nos fitam com sabedoria:
essa certeza com que se iludia
cada um deles, ao se pensar maduro.
Muito convictos,
de velhas crenças,
nas poses tensas
dos veredictos.
Mas por detrás da certeza, o que haveria?
Nesse porvir encarado de olhar puro,
em que se apega cada um, nesse seguro
ritual antigo de tal fotografia...?
LÂMINAS DE VIDRO IV
Seguro em seu dever patriarcal,
rodeado pelos filhos e parentes
ou, quem sabe, talvez por dependentes,
na mesma pose dinástica e imperial,
da austeridade
do Imperador
é o sucessor,
com seriedade...
"Pedro Segundo", imitado pelas gentes
e a "Princesa Isabel", em magistral
pose altaneira e quase triunfal,
para a moldura firmes e imponentes...
LÂMINAS DE VIDRO V
Estranho o trio dessa fotografia,
certamente, quer passar por elegante...
O da bengala nos encara, provocante,
mas será que o do centro nos sorria?
Que coisa rara,
gente tão séria!...
Alguma léria
mostra essa cara...
Contempla o mundo como um triunfante,
nessa expressão complacente de ironia,
enquanto o outro rapaz quase fugia,
apressado para encontro interessante...
LÂMINAS DE VIDRO VI
Onde se encontra a mãe dessa família?
Sentam-se o pai e um filho nas cadeiras...
Há duas meninas em batas de enfermeiras
e uma senhora, em gala, se perfila...
Seria a mãe?
Por que em pé?
Ponto de fé
mostrar respeito
ao senhor seu marido? Ou é sua filha,
entre os irmãos, em roupas domingueiras,
firmes os rostos, as visões certeiras
dessa gente engomada para a fila...
LÂMINAS DE VIDRO VII
Dois grumetes seguram panamás
que, certamente, nem sabem usar...
As duas meninas, a ponto de chorar...
Quantos castigos à sua mente faz
a recomendação
de que não é brinquedo!
Qual o segredo
da imóvel posição
que os roubou aos folguedos de seu lar?
A ventarola que a mais velha traz
parece mais o espelho de horas más,
refletindo um lambe-lambe a trabalhar...
LÂMINAS DE VIDRO VIII
Enfrenta a vida em curiosa desconfiança
esse menino, entre as dobras da mantilha.
Decerto é no verão, que sua família
mostra orgulhosa a pele clara da criança...
Mais sonhadora,
a jovem dama,
olhar de chama,
toda senhora...
Orgulhosa do fruto de seu ventre,
mostrando o filho qual uma oferenda,
envolvido nas franjas dessa renda,
para que o mundo triunfante adentre...
LÂMINAS DE VIDRO IX
Nessas poses tão antinaturais
ressumbra a ânsia da imortalidade.
O corpo não perdura, é bem verdade,
porém fotos talvez sejam imortais...
"Assim eu fico,
depois da morte;
a minha sorte,
assim dedico..."
Nessas paredes de molduralidade,
esse reflexo das feições carnais...
Ou quem sabe, equilibrado nos beirais
de uma lareira, com mais visibilidade...
LÂMINAS DE VIDRO X
É claro que em tais fotografias
não é o rosto que fica, só um reflexo
da luz sobre as feições, em tal amplexo,
qual uma casca das almas fugidias...
Que nunca volta,
mas que o retrato,
diz o boato,
guarda e não solta
essa vaidade, não importa de qual sexo,
esse resguardo de antigas ironias,
a fina capa de luz com que cingias
a superfície de um interior complexo...
LÂMINAS DE VIDRO XI
Tais olhares mostram certo hipnotismo,
envolto num rancor de fantasia:
é como se invejassem nossa orgia
de luz e movimento e preciosismo...
E se tivessem
restos de alma?
Olha com calma:
seus olhos mexem.
Talvez exista uma fantasmagoria,
quem sabe até um certo mesmerismo,
nesses rostos consumidos de mutismo,
cuja visão a ti fascinaria...
LÂMINAS DE VIDRO XII
E quem nos diz que os rostos esquecidos,
guardados longo tempo nas gavetas,
reservas de energia, bem secretas,
não conservam dos séculos perdidos?
Na escuridão,
entre jornais,
sonhos formais,
sem ilusão...
Mas quando à luz de novo são trazidos,
então nos fitam, com vistas indiscretas,
na lembrança de suas horas mais diletas,
antes que os corpos fossem consumidos...