Deveres de um homem
O homem deveria se basear no passado, nas suas obras, no seu baú de tralhas de sótão,
nos seus manuscritos, seus livros antigos, fatos, perdas e danos,
nas feridas, fracassos, deslizes, risos contidos e choros incontidos,
beijos ganhos e negados, abraços que não teve, netos e sobrinhos,
família que cresceu e que cada um foi pro seu lado,
no futuro da velhice, nos avós e bisavós,
repensar o presente,
nos crimes cometidos,
palavras ferinas,
ódios guardados,
amores quebrados,
fortuna obtida e ao vento largada
seu tempo de guri, seus colegas de escola,
a bola a rolar no campinho de barro,
a flor ofertada pra professora encabulada,
o zero em matemática e a vergonha de ir ao quadro negro,
o primeiro amor, a primeira namorada, o amasso escondido,
a primeira transa e as milhares de artes,
as birras, as surras, as superproteções,
as manhas e manhãs, o pão quentinho e o cheirinho de café,
o mato molhado e o aroma do campo, as flores e os grilos,
os sapos e os pássaros,
o mugir do boi, o galope do peão,
as brincadeiras de ruas, a doce liberdade
as primeiras letras, os gibis, as ilusões,
o primeiro sexo, a visita constante ao banheiro,
a adolescência, a cama molhada, o lençol
os retratos nos cômodos, a geladeira vazia,
a mesa farta, e a família não reunida,
o êxodo dos amigos, as incertezas,
a fé e o medo,
a filosofia e o tédio,
a poesia e o vazio,
O homem deveria repensar seus pensamentos,
Seus preconceitos e ojerizas,
Seus valores e manias,
Suas farras e suas taras,
Sua saúde e doenças,
Seu orgulho imensurável,
Sua ânsia indomável,
Seu querer incontrolável,
Mas o homem senta,
Sentado permanece olhando o céu,
Pega mecanicamente sua ferramenta,
E cava, cava, cava, cava, em busca de água,
Mas nunca que regou uma flor.