RECORDAÇÕES PATERNAS

Veneração revivida,

A cada dia mais cheia de religiosidade,

Por seus livros,

Velados, observados, folheados

Como algum ente querido doente,

Necessitando de zelo extremado.

Em seu exercício profissional,

Competente, arredio, desprendido

Das grandes convenções humanas.

Sem vínculos financeiros em suas curas,

Em lenitivos pagãos.

Suas vestimentas eram simples,

Sempre as mesmas,

Sóbrias, despojadas dos mistérios

Da moda enigma.

No surrado paletó, nas camisas velhas,

No sapato de mil afazeres,

Servia a lida no galinheiro,

Servia para receber politiqueiro.

Percorria incólume os caminhos da loucura,

Passava indiferente aos desvãos da pindura.

Tirava de seu cotidiano enfadonho,

Prazer, mistério...

Seus hábitos de tão comuns,

De tão rotineiros,

Tinham o exotismo das abadias franciscanas,

Suportavam ser caminho, ser destino, ser um fim.

Percorreu os percalços da vida com amor, com ardor...

Ao largo de coisas humanas,

Que se exuma, sadicamente, todas as manhãs.

Foi pai compreensivo,

De carinho distante, inofensivo...

Amante de velado pudor;

Foi para mim, filho rebelde,

Por anos uma grande interrogação,

De saudosa presença.

Sua postura secular,

Marcou meus espaços,

Tingiu meus hábitos

De cores indefinidas,

Como faz a loucura em seus momentos de reclusão.

Estranho, alegre, indiferente, tímido...

Deixou seus genes

Entranhados em minha carne;

Filamentos microscópicos;

Vínculo secreto com a imortalidade,

Cárcere que não se pode abandonar,

Cárcere que faz bem,

Cárcere que se pode perdoar .

Carregou com destemor otimista,

Sua bandeira singular,

Pendão surrado,

De tonalidade indefinida,

Um carmim de aspecto triste.

Suportou seu fardo com indiferença,

Passou pela vida,

Como passam os sonhos impossíveis,

Maculados a cada instante,

Pelos arquitetos da moda .

Viveu nele esse sonho despojado,

Um sonho que precisava ser sonhado,

Não sei bem o porquê!