Diálogo com a poesia "Tabacaria" de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa
Eu pensava, Álvaro, que só eu me sentia não ser nada
Também, Campos, sinto nunca serei nada
Tento, poeta, não mais querer ser nada porque penso que não posso ser
E como você, apesar disso, os sonhos do mundo inteiro me povoam.
No meu quarto só há uma janela
E dele vejo árvores, prédios, estacionamento, carros, céu, por vezes nublado
Sou parte dessa multidão do mundo anônimo na metrópole
E nem eu mesmo sei quem sou
A minha rua, amigo, de igual forma é passagem de muita gente
E de fato é um mistério pois cada um que passa tem um motivo
Porém, a rua não me permite saber os pensamentos
E essa realidade que apreendo é um real incompleto e desconhecido
E a persistência dos mistérios envolta de todos, Álvaro, as pessoas,
Os cachorrinhos, os fatos nas janelas, as moscar, as borboletas e os mosquitos
E, como você, disse, as pedras, porque na rua tem pedras, calçamentos, sapatos, chinelos e pés descalços, Campos.
A morte põe nas paredes umidade, nos humanos cabelos brancos, pesares, saudades e medo
E, poeta, há muitas carroças na minha rua, os catadores de papel passam constantemente e agora com aparelhos de som com música no último volume
Dessa forma, amigo, não é só o Destino que conduz carroça na minha rua e a estrada é composta de papelão, buzinas, fuligem de ônibus, bicicleta e motos.
Talvez eu saiba a verdade e talvez por isso esteja vencido, Álvaro
Estou sempre para morrer, Campos, já fui desenganado por médicos não conto as vezes
No entanto, nunca estou tão lúcido quanto deveria, ou se estou, nunca sei
Tenho irmandade com as coisas, com o lírio que brota mais duas flores nessa primavera, poeta, com o livro que leio, com a alegria por uma notícia boa vinda de um amigo.
Não quero saber de despedida ainda, Álvaro e as carruagens ainda não devem vir aqui
A minha cabeça pensa na luta pela continuidade da vida, Campos,
Preciso sempre aquietar meus nervos, porém meus ossos doem sempre, hoje tirei Raio-X para saber como estão, espero que estejam bem obrigado.
Amigo, ultimamente a perplexidade é minha companheira diária, pensei, achei, esqueci e não chego a nenhuma conclusão
Não devo lealdade à Tabacaria, Álvaro, não fumo, nunca fumei, não aprendi a fumar
No entanto, sei as coisas reais por fora nublam as coisas reais por dentro e o sonho talvez as expliquem um pouco
Também tenho a impressão, Campos, falhei em tudo
Porém, diferente de você, talvez tenha feito muitos propósitos
Tudo se tornou em nada, poeta
O que aprendi e me ensinaram, amigo,
Talvez tenha também restado num quintal de casa
Os propósitos, talvez, tenham sido grandes demais
E o quintal estava cheio de leiras e frutas comuns
E pessoas rindo e brincando, Álvaro,
Na minha casa há uma varanda com uma cadeira
Posso ficar sentado na janela e nunca estou lá
De igual forma não sei em que pensar, Campos.
Não sei o que serei e não sei o que sou, já escrevi, por certo, algo assim, poeta.
Não sou o que penso, disso tenho certeza, pois justamente penso muita coisa
Sou único e sou muitos? Como você diz não poder ser
Não sou gênio, amigo, disso sei com certeza
E não estou entre o que pensar ser e sei a história me esquecerá
Conquistei nem sei o que e não sei do futuro dessas conquistas
Sou a pessoa, Álvaro, mais insegura que pode existir
Não acredito nem em mim nem em nada meu
Não há mais tantos loucos em manicômios no meu país, Campos,
E nem os que portam certezas e a minha lucidez é ter tantas dúvidas
Não tenho também nenhuma certeza e nem sei do certo ou do duvidoso!
Sou, talvez, o mais vazio de mim mesmo...
Não fico nas janelas altas sonhando nem tampouco me sentindo gênio
As aspirações se eram altas ou boas já não existem mais, poeta
Podiam até ser realizáveis, no entanto, não foram realizadas
Se o mundo é para quem nasce para conquistar, amigo,
E não para quem sonha, talvez eu ainda esteja no mundo por teimosia, sem razão.
Nem sei direito a história de Napoleão, Álvaro.
Não consigo me comparar a Jesus, nem mesmo a Kant.
Não sei se sou o da janela alta e moro no segundo andar, Campos.
Porém, sinto serei o para que não nasci,
O que poderia ser, o que ficou atrás de um muro sem porta
Quem cantou a música ainda não composta e não dançou a capoeira
E quando Deus falou não conseguiu ouvir.
Não creio mais em mim, poeta, nem nas coisas
Basta que sinta o sol, a chuva, o vento e leve meu chapéu
E com as coisas da natureza venha as coisas da vida
Sou cardíaco, amigo, e amo as estrelas
E no sonho e desejo o mundo está a nossos pés
E no despertar outro mundo se anuncia, Álvaro,
Quando o pé toca o chão são outras anunciações
E está lá a terra e todos os astros do universo
(Nunca mais comi chocolates, Campos, nem tenho perto de mim criança;
Vou comer chocolates sim!
Se não há mais metafísica senão em chocolates vou preferir os que não têm açúcar
Será que a confeitaria ensina mais que as religiões todas mesmo, poeta?
Vou ver uma criança comendo chocolate
E saber se porta nesse prazer a verdade de saborear essa iguaria!
Não quero, amigo, deitar tudo ao chão nem tampouco a vida.)
Quero, Álvaro, de verdade, tirar de mim a amargura do que não serei
E esses versos talvez me ajudem a fazer isso
Espero não seja impossível.
Não quero, Campos, me desprezar, embora chore às vezes,
Não quero me considerar roupa suja e embora me desvista
E fico sem camisa, isso é por causa de um dia de calor.
(Também procuro inspiração em todas e todos, poeta
Em quem não existe e consola
Como as estátuas das deusas gregas, as romanas,
As amadas dos poetas, romantizadas
Até na Marquesa de Santos, esta do século XIX,
Volta e meia vou na sua casa no centro de Sampa
E me inspiro até na Gabriela do cravo e canela,
Me inspiro nos homens bonitos da Santa Cecília
Esses me inspiram a escrita!
O balde do meu coração não está vazio, amigo,
Fizeram nele uma passagem desviante para o sangue circular
Se me procuro, como os espíritas aos idos,
Encontro o nada e muita coisa e fico em dúvidas
Gosto de ir à janela, Álvaro, e contemplo a rua e os passantes
Há também, lojas, transeuntes, automóveis,
Os bem-vestidos ou os vestidos como podem
E os cachorros são muitos nessa cidade,
Porém, Campos, não me sinto apartado,
E me entendo fazendo parte da paisagem
Como faz a namoradeira nas janelas por aí)
Posso dizer, poeta, como nosso colega, confessar que vivi,
Amar, então, foi até o coração arrebentar e quase explodir,
Acreditei, fui crente, nem tão fiel, no entanto, cri realmente
Foi forte, amigo, a declaração de que inveja mendigo,
E triste ver suas roupas velhas e sujas, suas feridas no corpo e na alma,
As mentiras das vidas (aqui em Santa Cecília há muitos moradores de rua
E leio todas essas coisas de igual forma nos seus olhos súplices)
Porém, ser eu mesmo é muito difícil, sinto assim
Acredito que todos viveram, alguns estudaram, amaram e creram
(Sei, Álvaro, a realidade dessas coisas é, de fato, dilacerante);
Amputar a vida é como retirar parte do corpo
Que continua a viver sem a vida anterior, Campos.
Não soube o que fiz de mim, poeta,
E não sei se poderia fazer de mim algo diferente
Pois nessa sociedade as opções são limitadas
A indumentária própria nunca acertei, não sei se me visto adequadamente
Tive que sempre disfarçar quem fui e não pude me mostrar, amigo
A perdição foi meu norte, pois ser eu me era proibido pelos outros
Quando quis tirar a máscara, Álvaro, veio a pandemia
E ela teve que continuar no rosto.
E depois que não foi mais preciso usá-la o espelho me disse o tempo passou.
Só me embebedei uma vez, foi péssimo.
Gosto de dormir em lugar próprio
Gosto de gatos e me sinto inofensivo, amigo,
E penso que escrever me põe na sublimidade, também.
Penso meus versos são inúteis, Álvaro, como pensastes sobre os seus
Porém, me consolo se eles têm algum tom de música
Queria ser uma bela poesia de mim
Não gosto de Tabacaria, embora haja algumas por aqui
Só meus pés no chão me dizem existo
E não gosto de pisar em tapetes,
Não posso tropeçar, nem cair, pode isso?
A caravana passa e há os vendedores de tapetes
Os comerciantes sempre chegam à porta de seus comércios, Campos,
Eles olham tudo e os olhamos e por vezes, com desconforto,
Eles sempre estão protegendo suas mercadorias e sempre desconfiam
Até mesmo dos compradores, poeta.
No entanto, uma coisa é verdade, todos morreremos, ele e eu, pois sim.
Os anúncios nas portas ficarão para além dos donos
E os versos dos poetas serão lidos depois da vida dos escrevinhadores,
Assim, esperamos, amigo, assim esperamos.
E será que a rua também morrerá, decerto
E o nosso português, o nosso pretuguês, o nosso brasileirês
Pois sim, Álvaro, morrerá o astro que nos abriga,
Daqui a bilhões de anos, porém, morrerá, e também o sol
A escrita e os comerciantes perduram em algum lugar do universo, será?
Não estou certo, só sei que hoje cá, estamos todos.
Pensando nas dimensões universais
A existência dos vendedores e dos fazedores de versos
Denuncia a humanidade de ambos e talvez a sua inutilidade, Campos,
A conviver com a imaginação e a determinação do dinheiro
Com o mistério do fetiche e dos encantamentos, do dinheiro e das palavras
Que são uma coisa e outra e não são nada do que são, poeta.
Nunca entro em Tabacaria, amigo.
Só entrei uma vez para comprar uma bengala, veja só,
Para apoiar meu corpo combalido,
Para não cair nem no chão nem na realidade
Nem abaixo nem em cima de mim
Sempre erguido, emprestando a energia possível,
Meio em dúvida, no entanto, humano como todos
E nos versos posso dizer que tenho certezas, Álvaro.
Nunca acenderia um cigarro e penso sempre em escrever versos
E, em algumas vezes, o vento me traz a libertação de pensar
Minha rota não é certa, é incerta, Campos,
E desfruto, com a brisa e com a lucidez
Das emanações mais singelas
E as boas emanações verbais no pensamento por um mal-estar no mundo.
O sofá pode ser um meu refúgio
Mas nunca fumei nem vou fumar
Nunca experimentei esse prazer e desprazer na vida, poeta.
(Não temos mais lavadeira, amigo, temos agora máquina de lavar roupas,
E jamais me casei com uma mulher, pois sei que assim jamais seria feliz
Nem tampouco a faria feliz)
Estou sempre vestido para ir à janela, Álvaro, vou sempre a ela.
Dela sempre vejo os comerciantes recebendo dinheiro (com as máquinas de cartão de crédito).
Eu conheço a comerciante; é a D. Flor simpática e também sem metafísica.
(Ela está sempre além do balcão)
Por vezes, D. Flor me vê, como por uma pulsão dos deuses.
Só a cumprimento quando passo perto dela na calçada e me responde com um sorriso
E dessa forma o universo se reconstrói sem ideias e com a realidade forte, Campos.
Rodison Roberto Santos
São Paulo, 27 de outubro de 2023