Memórias de Elisa

“Nothing is real, but the Dream.”

Não sei quando te vi pela primeira vez.

Recordo-me de ti numa tarde de Verão

e das primeiras palavras que te ouvi:

“E qual é que você vai levar”?

Os teus olhos tímidos e o rosto corado

formavam um contraste delicioso

com os atrevidos lábios carmim

e os longos cabelos fulvos.

A blusa muito curta, atada à frente,

deixava entrever, quando te curvavas,

uma nesga das costas

e a pele dourada da barriga.

Eu pensava que o teu modo de vestir

era muito ousado para um lugar tão público,

e o batom violeta-carmesim

era demasiado agressivo

num sítio tão pacato.

Das pernas de atleta

(eu pensava que jogavas voleibol)

recordo-me quando saías,

airosa e elegante no “tailleur” creme ou bege,

às seis menos um quarto,

para apanhar a camioneta de regresso a casa.

“Que horas tem?”

“Faltam dezoito minutos para as seis.

Está quase na hora de ir apanhar o camião.”

“O camião?!”

“Sim, a camioneta para o Souto.”

“Souto? Não conheço essa aldeia!”

Then the big boss comes in

and anyway it was time for you to go.

Os ombros contemplei-os apenas uma vez

numa quente e soalheira tarde de Setembro

em que o “ratinho” te veio esperar à Biblioteca.

Oh, os ombros! essa parte sagrada e interdita

da anatomia feminina, no dizer dos hindus.

Quão belos! Lisos e redondos,

tão brilhantes e macios,

levemente dourados,

expostos assim ao meu encanto

nesse vestido preto com alças

que desvendava as tuas espáduas

de seda maviosa!

E os dedinhos cheios e rosados

como as almofadinhas das patinhas do gatinho,

apontando o sítio onde se deve assinar

como se faz aos meninos pequeninos.

As mãos longilíneas e mimosas,

nervosas e sanguíneas,

com que escreves os postais aos leitores

que já passaram o prazo

(namorados pequeninos!)

e assinas o teu nome

Elisa B

que eu aprendi a imitar!

E é claro, o rosto, de novo,

enquadrado pelos cabelos

curvos, crespos, ondulados,

ruivos, rubros e castanhos,

que eu já conheci longos

como crina fogosa de eguazinha indomável!

“Faço anos em Outubro.”

“E quantos faz? 21?”

(Eu adoro sempre pôr-me a adivinhar!)

“22.”

“Então o seu signo chinês é Cavalo.”

Sempre linda na minha memória

Sempre e para sempre linda,

apesar desse sorriso desdenhoso

e da mútua frieza,

só aparente, não real,

apenas porque nos encontrámos no sítio errado,

algures no começo do Verão.

Ó doce pequenina!

Eu sinto um carinho tão fundo por ti,

Mas não sou livre para o demonstrar.

Amo-te bem mais longe do que perto

E contudo não gosto que te vás embora.

Adoro ver-te e saber que estás aí,

enquanto eu leio (e penso!)

poemas de amor!

E quando regresso a casa,

o gatinho recorda-me de ti

por que eu o amo como te amo

(ou talvez ainda mais do que te amo...)

Doce, linda e terna Andorinha!

Os cabelos são as asas

magníficas, ligeiras e volantes

com que te vejo esvoaçar

no meu céu de fantasia!

Os vestidos e o perfume

são as penas multicores,

azuis, verdes, creme, negras...

Andorinha arlequínea!

A tua voz é canto, cicio,

murmuro, trilo e gorjeio,

um som mavioso e tão feliz!

O teu nome é um puro mantra,

é impossível pronunciá-lo sem sorrir.

Foi por ele que te amei.

(Elisa Belinha: que coisinha!)

“Como é que soube que eu me chamava Belinha?”

Os teus olhos são mandalas,

múltiplos cristais refletidos

no brilho da tua íris,

já não mais tímidos,

mas seguros, felinos, sedutores!

Encantadora, atraente e elegante

que outra Andorinha poderia haver

que contigo se comparasse?

Tu és a pura essência do prazer

e eu amo-te e eu adoro-te,

mas esqueci-me de to dizer

nesse postalinho de aniversário.

(“Wir sind alle happy bist du birthday!”)

“You are twenty-two: I Love You!”

E este ano poderia ser:

“You are twenty-three: Do you like me?”

E para mim:

“I am thirty-six: I’ve got a loving sickness!”

“Que toda a alegria do mundo esteja sempre contigo!”

Que fórmula tão bela e sincera!

E é igualmente para ti este outro desejo:

“Possa o teu dia mais triste já ter passado

E o mais feliz ainda estar para vir.”

Mas é tão difícil ser feliz!

Os gatinhos correm e saltam e brincam

enquanto te escrevo isto,

mas serão eles felizes?

Onde buscar essa plena alegria

que se evola na doce fragrância do Amor,

na inocência terna da infância,

nos arroubos místicos dos santos,

ou na paz súbita interior?

Por isso eu desejo sempre a felicidade

das pessoas que amo,

para a partilhar e receber

como dádiva graciosa de amor.

Não sei quando te vi pela primeira vez.

Não sei quando te verei uma última vez.

Entre a primeira e a última –

lembranças, sonhos, fantasias.

Recordações. Memórias de Elisa.

Sª Mª Feira, 10-03-1989

Rui leprechaun
Enviado por Rui leprechaun em 21/03/2023
Reeditado em 21/03/2023
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