A Voluntária

Nota: esta poesia foi originalmente publicada em 12/2/2016 e está sendo reeditada com o acréscimo do texto "O amor maduro" da colega recantista Cassia Caryne. 


A VOLUNTÁRIA
Miguel Carqueija


Eu sou anjo de bondade
mas feito de carne e osso:
espalho a felicidade,
salvo do fundo do poço.

Voluntária, meu labor
é um risco permanente;
mas não posso ter pavor,
tenho que seguir em frente.

Numa terra flagelada
por tremor, deslizamento,
socorro gente assustada
agindo com sentimento.

Eu sei fazer uma sopa
e cozinho com esmero:
preciso do alho, opa!
Sei fazer um bom tempero.



Ninguém morrerá de fome
se eu estiver por perto;
eis aqui seu prato, tome!
E procure ser esperto.

É triste ver tanta gente
que se vê assim sem lar:
— Tudo ruiu de repente,
como irei recomeçar?

Consolar um ser humano
é nosso dever sagrado!
Sofrer tanto desengano
e perder um ente amado!

Gatinha, eu te encontrei
e te adoto com carinho:
perdeste os donos, bem sei:
então serás meu bichinho.




Não precisa na verdade
ter desastre ou furacão
pra levar felicidade
basta amor no coração!

Visitar um orfanato
e alegrar uma criança,
isto sim é que é um bom ato
que pra alma traz bonança!

Eu sei que Deus abençoa
o meu voluntariado:
pois não é uma coisa à toa
se quem sofre é consolado!

E os velhinhos no asilo
como sofrem, coitadinhos!
Quanta dor me traz aquilo:
vê-los abandonadinhos!




Jesus, nas almas acende
o fogo do teu amor:
quem enfim não compreende
o que é penar na dor?

Não posso tudo fazer
então o que posso eu faço:
ajudar é um prazer
e fazer do amor um laço.

Não tenho medo da lama,
da chuva torrencial:
nutrindo do amor a chama
nada irá me fazer mal.

A vítima eu carrego
com a força que Deus me deu:
aos irmãos assim me entrego,
vossa irmãzinha sou eu!

Sou como fada que surge
só para o bem praticar:
e sei bem que o tempo urge,
coragem, eu vou te ajudar!

24/25/11/2015 6/2/2016



O AMOR MADURO

Cassia Caryne - 06/02/2020



Um amigo chamava-me com insistência para eu participar de um voluntariado no Hospital São Carlos, na minha cidade, cujas pessoas são chamadas de "Anjos da Noite". Engraçado esse nome... Eu daria o nome de "Anjos da Saúde", ou "Anjos do Hospital" ou simplesmente, "Anjos". Esse trabalho consiste em visitas aos internados, para isso dedicando um dedo de prosa ou uma oração e, também, distribuição de bebidas e biscoitinhos. Nunca dava certo para eu ir... Mas sempre é chegada a hora. Finalmente, determinada vez, consegui e levei minha filha Mari para o serviço. Já se passou quase um ano desde que fui pela primeira vez. Nas quartas-feiras estou sempre cansada, por causa do meu trabalho que, nesse dia, é mais pesado do que nos outros dias, mas não desisto. Até digo para Mari que não conseguirei ir, mas ela dispara uma falação que acabo cedendo, não por minha vontade, mas por outra sobrenatural. Chego arrastando e saio forte, revigorada. É um remédio muito poderoso! Nessa última aconteceu algo emocionante. Visitei um senhor, já idoso, operado naquele dia. Estava eu na companhia de outro "Anjo", quando chega sua esposa, idosa também, para a visita. Ela quase correu quando o viu num canto do quarto, que dava leito a outros doentes. Chegou pertinho dele, pegou numa mão e lhe deu um beijinho na boca. Cochichavam baixinho, de modo que por mais que eu me esforçasse para ouvir, não entendia o "dialeto". Enquanto falavam, ele roçava a outra não na face da amada. Eu achei a cena tão linda, nem se tivesse saído de um filme super produzido! Era tanto amor à prova. E eles estavam no mundo deles, nem viam as outras pessoas ao redor. Eu fiquei feito boba, sorrindo e pensando: o amor é mesmo divino!

Eu olhei para mim, nos olhos nus, despidos de qualquer pudor, à procura de uma razão, uma única que fosse, uma razão. Fiz síntese, análise, explanação, contabilidade... Medi feitos e desfeitos sonhos que vi indo para o ralo, qual água de banho... Pesei meus dias nos pratos da balança, aferi mudanças, nem sutis, nem mansas... Senti pujança, força de maré que tudo revira, não é o que vira antes em mim. Sou alguém que gosta mais hoje do que antes de si, ainda que desgosto haja de alguém que gosto. O riso grande, que rasga a cara, logo descara a dor doída de incompreendida vida. Não sou árvore enraizada, forte acácia! Sou, antes, mais parecida com o fogo, incinerando diariamente maledicências e pequenas tragédias. Ou água na busca do rio, que escorre da mão que deseja prendê-la. Ou o vento, que sonha de ventar, carregando cores e suaves perfumes de chuva, magnólias e manacás. Não se prende, não se guarda o ser que se desvencilhou dos grilhões da vida desvalida... Incompreendida vida!



Cassia Caryne, mineira, nascida em 02/05/1966, casada, mãe e avó. Psicóloga e servidora pública federal aposentada. Acadêmica da Academia Lagopratense de Letras. Livro publicado: Sussurros da Alma:crônicas e poemas.






Imagens pixabay. Imagem da fadinha, gentilmente cedida por Rosa das Oliveiras.
Fotografia de Cassia Caryne, gentilmente cedida por Cassia Caryne.