DE REPENTE SETENTA
(Para Maria, minha mãe)
No movimento da existência,
Fui imaculada menina,
Corri pelas campinas,
Bucólicas atitudes,
Colhi os frutos rudes,
Me vi na florescência,
No voo da borboleta,
Fazia daquela cadência,
O meu encantado planeta.
No movimento da existência,
A doce menina foi embora,
Me deixou travessia afora...
Sem saber quem eu era,
Se realidade, se quimera,
Se mulher, se adolescente,
Se as duas em só uma,
Retinas reticentes,
Perdidas em meio à bruma,
Pertencida a outras essências.
No movimento da existência,
Fui mãe precoce,
Fui iludida, fui posse,
Fui errante poesia,
Sofri, talvez, mais do que merecia,
Tive motivos para desacreditar,
Em Deus, no verbo amar,
Mas, desfiz da tendência,
Desacreditar não é o meu ofício,
Sou cristã demais para isso.
No movimento da existência,
O tempo passou como aragem,
E eu contemplo a minha imagem,
Contemplo o que sobrou de mim,
Penso... não estou tão ruim assim,
Para quem chegou aos setenta,
Achando que não chegaria,
Na sexagésima freqüência,
Superei a angústia de ser.
Na enigmática existência,
Minha alma se movimenta,
Coadunada ao corpo, sutil harmonia,
Faz o meu dia resplandecer,
E eu continuo sedenta,
Para me reinventar, para viver...