A Agente Secreta
Poema originalmente publicado neste espaço em 17 de abril de 2015, ora republicado, com o complemento do conto de Adelaide Paula.
A AGENTE SECRETA
Miguel Carqueija
Nem devo mostrar meu rosto,
a minha função não desmente:
estou aqui nesse posto
fingindo ser inocente.
Se este mundo fosse bom
eu nem seria precisa;
mas é de cinza este tom
por isso eu suo a camisa.
Sou pura como uma pomba
e a ninguém desejo mal;
eu sei jogar uma bomba
mas não quero fazer tal.
Não sou uma assassina,
gosto de bicho e criança;
sigo em frente a minha sina
mas em Deus tenho esperança.
Eu tenho que ser esperta,
pois vivo na corda bamba:
fazer sempre a coisa certa,
senão vou para a caçamba.
Sei usar armas, lutar,
pular de uma grande altura,
esconder-me, camuflar,
sou na verdade bem dura.
Mas tenho alma inocente
e a Deus peço proteção;
não sou pessoa inclemente,
somente ajudo a Nação.
Eu sei que esta minha vida
pode súbito acabar;
minha família querida
posso nunca mais olhar.
Isto são ossos do ofício,
que o meu anjo me ajude!
Que eu não caia em precipício,
que um dia minha vida mude!
Roubar oculto segredo,
descobrir um espião,
tudo isso enfim me dá medo
e eu vivo na solidão.
Quero encontrar o amor
mas eu tenho o meu dever;
guardo pra mim minha dor,
chorar ninguém vai me ver.
Nós temos nosso destino,
e não podemos fugir:
não cometo desatino,
nem deixo a peteca cair.
O que me dá gosto enfim
é ter limpa a consciência;
vivo esquecendo de mim
e treinando a paciência;
minha única vantagem
é que eu não tenho maldade;
só tenho fé e coragem
e a minha dignidade.
Que Deus me dê o perdão
se algum mal eu cometo:
me conduza pela mão,
amar-Vos sempre eu prometo.
Sou estóica e sigo em frente,
nas mãos de Deus eu estou;
sem Ele sou indigente,
com Ele adiante eu vou.
Porque as nações se odeiam
quem não tem culpa é que pena;
e enquanto elas guerreiam
façamos uma novena.
Pois só Deus pra trazer luz
neste mundo incendiado;
se por nós morreu na Cruz
eu quero estar do seu lado.
CONTRAESPIONAGEM
Adelaide Paula
O som do chuveiro o despertou de um sono profundo que havia tempos não sentia. Olhou para o lado e viu a camisola preta sobre o canapê e o casaco de pele no chão. Espreguiçou como um homem comum, respirando fundo, buscando no ar o cheiro dela. Estendeu o braço e acariciou o travesseiro, depois puxou - o para si, apertando-lhe como se apertasse um corpo macio e sensual. O perfume intenso impregnado no tecido era a alma daquela moça. Misteriosa e sofisticada. Sobreveio-lhe uma excitação deliciosa e sua memória voltou à noite recém vivida e às delícias daquelas curvas voluptuosas. Cogitou aposentar-se. Pela primeira vez, após um ano de relacionamento, sentia que era a hora de deixar a vida de espião. A correria constante, as mudanças repentinas de endereços e identidades. As missões impossíveis, os resgates dramáticos. A inconstância da vida, sempre sozinho, sem família. É certo que vivera na luxúria, cercado pelo melhor que o dinheiro pôde comprar, mas também pagou um preço alto pelos privilégios da riqueza. Vivera entre mulheres incrivelmente belas, mas vazias e volúveis, parecia que o amor não o encontraria jamais. Entre tantas reflexões, virou-se de lado e contemplou a tela "O Beijo" de Klimt que ela tanto amava. O que ela não sabia é que aquele quadro ocultava um cofre e guardava, entre outros tesouros, o "Oppenheimer", o diamante azul de corte esmeralda com 14.62 quilates, que fora arrematado por ele na Christie's em Genebra. O diamante "Oppenheimer Blue" , a gema lapidada mais cara do mundo agora era seu passaporte para uma outra vida. Com ela. A ideia de viver numa bela casa nos Alpes suíços fez-lhe saltar da cama para ir encontrá-la no banheiro, onde revelaria seus planos para o futuro. Levaria o diamante para lhe pedir em casamento e isso certamente a deixaria encantada. Foi quando puxou o quadro e percebeu que o cofre estava aberto e vazio. Lá no fundo um bilhete dizia: "O gosto do beijo, o desejo do corpo - tudo foi verdadeiro. O resto foi contraespionagem. Dessa vez, você perdeu".
Adelaide de Paula Santos é natural de Brasília/DF, professora de Teoria Literária e Literatura Brasileira. Pós-graduada em Construtivismo Pós-Piagetiano pelo GEEMPA/RS e mestre em Teoria Literária pela Universidade de Brasília - UNB/DF; é autora dos Projetos "Chá Literário" e "Penso, Logo escrevo" que objetivam a formação de platéias, de jovens leitores e o protagonismo juvenil.
Imagens pexels, publicdomain, e fotograma do filme "Dupla explosiva" com Luci Liu.
Fotografia de Adelaide Paula, gentilmente cedida por Adelaide Paula.
Poema originalmente publicado neste espaço em 17 de abril de 2015, ora republicado, com o complemento do conto de Adelaide Paula.
A AGENTE SECRETA
Miguel Carqueija
Nem devo mostrar meu rosto,
a minha função não desmente:
estou aqui nesse posto
fingindo ser inocente.
Se este mundo fosse bom
eu nem seria precisa;
mas é de cinza este tom
por isso eu suo a camisa.
Sou pura como uma pomba
e a ninguém desejo mal;
eu sei jogar uma bomba
mas não quero fazer tal.
Não sou uma assassina,
gosto de bicho e criança;
sigo em frente a minha sina
mas em Deus tenho esperança.
Eu tenho que ser esperta,
pois vivo na corda bamba:
fazer sempre a coisa certa,
senão vou para a caçamba.
Sei usar armas, lutar,
pular de uma grande altura,
esconder-me, camuflar,
sou na verdade bem dura.
Mas tenho alma inocente
e a Deus peço proteção;
não sou pessoa inclemente,
somente ajudo a Nação.
Eu sei que esta minha vida
pode súbito acabar;
minha família querida
posso nunca mais olhar.
Isto são ossos do ofício,
que o meu anjo me ajude!
Que eu não caia em precipício,
que um dia minha vida mude!
Roubar oculto segredo,
descobrir um espião,
tudo isso enfim me dá medo
e eu vivo na solidão.
Quero encontrar o amor
mas eu tenho o meu dever;
guardo pra mim minha dor,
chorar ninguém vai me ver.
Nós temos nosso destino,
e não podemos fugir:
não cometo desatino,
nem deixo a peteca cair.
O que me dá gosto enfim
é ter limpa a consciência;
vivo esquecendo de mim
e treinando a paciência;
minha única vantagem
é que eu não tenho maldade;
só tenho fé e coragem
e a minha dignidade.
Que Deus me dê o perdão
se algum mal eu cometo:
me conduza pela mão,
amar-Vos sempre eu prometo.
Sou estóica e sigo em frente,
nas mãos de Deus eu estou;
sem Ele sou indigente,
com Ele adiante eu vou.
Porque as nações se odeiam
quem não tem culpa é que pena;
e enquanto elas guerreiam
façamos uma novena.
Pois só Deus pra trazer luz
neste mundo incendiado;
se por nós morreu na Cruz
eu quero estar do seu lado.
CONTRAESPIONAGEM
Adelaide Paula
O som do chuveiro o despertou de um sono profundo que havia tempos não sentia. Olhou para o lado e viu a camisola preta sobre o canapê e o casaco de pele no chão. Espreguiçou como um homem comum, respirando fundo, buscando no ar o cheiro dela. Estendeu o braço e acariciou o travesseiro, depois puxou - o para si, apertando-lhe como se apertasse um corpo macio e sensual. O perfume intenso impregnado no tecido era a alma daquela moça. Misteriosa e sofisticada. Sobreveio-lhe uma excitação deliciosa e sua memória voltou à noite recém vivida e às delícias daquelas curvas voluptuosas. Cogitou aposentar-se. Pela primeira vez, após um ano de relacionamento, sentia que era a hora de deixar a vida de espião. A correria constante, as mudanças repentinas de endereços e identidades. As missões impossíveis, os resgates dramáticos. A inconstância da vida, sempre sozinho, sem família. É certo que vivera na luxúria, cercado pelo melhor que o dinheiro pôde comprar, mas também pagou um preço alto pelos privilégios da riqueza. Vivera entre mulheres incrivelmente belas, mas vazias e volúveis, parecia que o amor não o encontraria jamais. Entre tantas reflexões, virou-se de lado e contemplou a tela "O Beijo" de Klimt que ela tanto amava. O que ela não sabia é que aquele quadro ocultava um cofre e guardava, entre outros tesouros, o "Oppenheimer", o diamante azul de corte esmeralda com 14.62 quilates, que fora arrematado por ele na Christie's em Genebra. O diamante "Oppenheimer Blue" , a gema lapidada mais cara do mundo agora era seu passaporte para uma outra vida. Com ela. A ideia de viver numa bela casa nos Alpes suíços fez-lhe saltar da cama para ir encontrá-la no banheiro, onde revelaria seus planos para o futuro. Levaria o diamante para lhe pedir em casamento e isso certamente a deixaria encantada. Foi quando puxou o quadro e percebeu que o cofre estava aberto e vazio. Lá no fundo um bilhete dizia: "O gosto do beijo, o desejo do corpo - tudo foi verdadeiro. O resto foi contraespionagem. Dessa vez, você perdeu".
Adelaide de Paula Santos é natural de Brasília/DF, professora de Teoria Literária e Literatura Brasileira. Pós-graduada em Construtivismo Pós-Piagetiano pelo GEEMPA/RS e mestre em Teoria Literária pela Universidade de Brasília - UNB/DF; é autora dos Projetos "Chá Literário" e "Penso, Logo escrevo" que objetivam a formação de platéias, de jovens leitores e o protagonismo juvenil.
Imagens pexels, publicdomain, e fotograma do filme "Dupla explosiva" com Luci Liu.
Fotografia de Adelaide Paula, gentilmente cedida por Adelaide Paula.