CANSAÇO
À Fernando Pessoa
Cansei de tanta humanidade...
Prefiro estar-me anjo, mesmo que não o saiba como,
a possuir asas sem tê-las, a sentir sem vê-las,
a ser sem ser, sendo, sem saber,
desta literatura um tomo...
Me afasta das nuvens o tijolo,
aos pés traz-me os caminhos pedregosos,
o orgulho de avançar à todo custo,
de semear a ordem que leva ao progresso
e deste o salto que torna o homem
o lobo de si mesmo...
Me afastei das únicas coisas que me fariam um ser vivo e feliz,
a inocência de atirar pedras no lago e vê-las ricochetear,
de assustar o pássaro que olhava para o outro lado,
de causar espanto ao inseto colocando uma folha
onde pensava ou imaginava ele, um caminho
sem tropeços...
Vi e senti muitas coisas que o homem
aprendeu ao longo de sua desaprendizagem,
desde a morte gratuita à morte encomendada,
a fazer o nascer ser obra de desprezo,
a fazer o medo evoluir até a paranoia,
a cessar as virtudes e aceitar a covardia...
O cansaço que me toma não é o de viver entre tantas invenções,
sendo o homem a principal delas, nem de ver possuídos
por tantas religiões;
é o torpor do espírito que se verga como junco à beira da lagoa,
não pelo vento que, triste, sopra por ter que o fazê-lo;
este cansaço é pela crosta que o recobre,
sujeira que se espalha pelo fôlego,
bactérias imorais, lodo, abismo...
Não me torno sujeito ao escuro da pressa mortal da depressão,
nem procuro o mais alto prédio para o salto mortal;
quero apenas descansar de todo o estojo de futilidades,
retirar a maquiagem que escondeu minh’alma,
conhecer a face oculta que dormia sob sete chaves,
reduzir ao mínimo o desconforto de tanta evolução,
eliminar o que torna o homem escravo de si
e da sociedade que criou para destruir;
não recorro ao amor apregoado em tabuletas,
à paixão que nubla as veias da imaginação,
nem ao propósito de salvar esta humanidade
usando o garfo e a faca da ciência:
de dentro do silêncio de cada coisa que me rodeia
ouço apenas o bater de asas do energético espírito central...