Herança
São tantas lembranças que guardo
Quantas as dores que tenho
Em risos passados me encontro
De olhos fechados me empenho
Observando o passado
História que me escreveu
Madeira do meu calado
E as velas que Deus me deu
Tantas saudades que sinto
Quantas horas insone fico
Antes de, enfim, não minto
Chorar entre os sonhos, aflito
Acordo com a mão para o alto
E, se o teto concreto não alcança
Que dizer do tempo, o regato
Onde banhei minha infância
Tantos sorrisos guardados
Quanto as marcas que venero
Sinais, lembretes, recados
Colados ao corpo que altero
Por armazenar tanto brilho
Gargalhadas e cicatrizes
Cambiadas, ó pai, por teu filho
Em tantas memórias felizes
Tantas palavras severas
Quantos alívios senti
Pois, mestre de minhas feras
Em cuja sombra cresci
Qual Atlas da mitologia
Erguendo o céu de ilusões
Que, sem tua força, cairia
A me privar das lições
Tantos os dias no ano
Quanto o que me sorriu
Viu graça no meu engano
Chorou comigo e caiu
Nos erros da minha autoria
Por não me deixar vacilado
Não se poupava, fingia
Vivendo a lição ao meu lado
Tantas críticas te fiz
Quanto sal há no mar
Não resiste o aprendiz
Ao seu mestre castigar
É, pois, tão fácil dizer
E, depois, se afastar
Quão mais verdadeiro é colher
E auxiliar no plantar
Tanta gratidão me vem
Quanto ventos a soprar
E sinto-me, ainda, aquém
De teu aspecto solar
Sou lua da tua luz
E o mais feliz dos espelhos
Pois meu viver se traduz
Em teus belos olhos vermelhos.