uma metáfora para meu pai

UM SEGREDO

Fernando Namora*

Meu pai tinha sandálias de vento

só agora o sei.

Tinha sandálias de vento

e isto nem sequer é uma maneira de dizer

andava por longe os olhos fugidos a expressão em

[nenhures

com as miraculosas instantaneidades que nos fazem

[estar em todos os sítios.

Andava por longe meu pai sonhando errando vadiando

mas toda a sua ausência era

o malogro de o ser

só agora o sei.

Andava por longe ou sentíamo-lo longe vem

dar no mesmo e no entanto víamo-lo sempre

ali plantado de imobilidade absorta

no cepo de carvalho raiado de negro

a que o caruncho comera o miolo

como as lagartas esvaziam as maçãs

estranhamente quieto murcho resignado

no seu estranho vadiar

os olhos aguados numa tristeza que hoje me dói

como um apelo perdido uma coragem abortada.

Ausência era tão de mágoa urdida tão de fracasso

[tingida

ausência era altiva e desolada altiva e triste sobretudo triste

tristeza sim tristeza solene e irremediada

só agora o sei.

Às vezes parecia-me uma águia que atravessa os ares

sulco azul

que nada distingue do azul onde foi sulcado

e por isso nem é águia nem ao menos

o que do seu voo resta para que

o sonho se faça real.

Meu pai era um homem com as nostalgias

do que nunca acontecera e isso minava-o víscera a

[víscera

como as tais lagartas esfarelam as maçãs

e então sei-o agora calçava as ágeis sandálias

miraculosamente leves soltas imaginosas

indo de acaso em acaso de astro em astro

eram de vento as suas sandálias fabulosas

levando-o aonde mais ninguém poderia chegar.

Os outros não o sabiam nem eu o sabia

só o víamos sentado no cepo velho

raiado de negro como uma estrela fossilizada

por isso tudo era para ele mais irremediável e triste

sei-o agora tarde de mais

tarde de mais é uma dor de remorso

que me consome víscera a víscera

como as tais lagartas esfarelam as maçãs.

Mas de qualquer maneira existe um segredo

de que ambos partilhamos

ciosamente avaramente indecifradamente

como os astutos conspiradores

que fazem do seu segredo

um mágico tesouro inviolado.

Um segredo simples:

o que sentiste pai

sinto-o eu agora por ambos

sinto-o por ti

sinto-o por mim.

Ainda que por ele devorados.

*poeta português

(fonte: página citador.pt/poemas)

Meu pai foi devorado pelo Mal de Alzheimer

Fernando Namora
Enviado por daguinaga em 11/08/2013
Reeditado em 29/08/2014
Código do texto: T4429530
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