Proseando com Fernando Pessoa, na esplanada do Café «A Brasileira»,
o preferido do autor, e o meu, no Chiado, em Lisboa.
«Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo…»
(Fernando Pessoa)
CHAMO-TE «MESTRE»
Chamo-te «Mestre»,
com prazer e alegria,
sabendo estar perante
uma criação
da própria Poesia.
Diante de ti
faço um vênia
porque, como ninguém,
tratas por «tu»
as palavras
e consegues reduzi-las
ao essencial.
Porque, como um Mestre,
achas na ausência,
ao ascetismo,
os significados maiores
da tua religião pessoal,
pagão, e ao mesmo tempo,
adorador de vários deuses,
não venerando deus algum…
Chamo-te «Mestre»,
a ti, que nunca guardaste rebanhos,
mas foi como se os tivesses guardado,
e com imenso jeito,
pois alma de pastor
guardas dentro do peito.
A ti, que num só dia de inspiração,
escreveste os 49 poemas de
«O Guardador de Rebanhos»,
um tratado de mestre
deveras único,
um tratado de anti-metafísica,
de alguém que escreve
como se estivesse comendo cerejas…
Caeiro, Reis, Soares, Mora, Search, Pessoa…
Qual deles nos traz a verdade,
num céu de etéreas incertezas?
Qual deles és tu?
Qual deles tu és?
Como se isso importasse…
O mundo tiveste, tens, terás
sempre a teus pés…
Chamo-te «Mestre»,
porque «Mestre» tu és
e contigo me dispo, também,
dos preconceitos
da humanidade, da cultura,
da modernidade.
Contigo sacio minha sede
nas fontes de água pura
da montanha.
Na água que nasce
do degelo e cai,
em cascata,
sobre o mundo.
Chamo-te «Mestre»,
e contigo sigo,
em busca do nada,
em busca da «Paz
do espírito vazio»,
em busca do Amor,
a «eterna inocência»…
Chamo-te «Mestre»,
a ti, que te desmembras em muitos,
tal é a sensibilidade
que não te cabe no peito!
Chamo-te «Mestre»,
e «dás-me sonhos teus
para eu brincar…»
«Mestre» chamar-te-ei
enquanto nos meus olhos
a luz do dia brilhar!
Chamo-te «Mestre»,
a ti que «finges tão completamente,
que chegas a fingir que é dor,
a dor que deveras sentes»…
Uma dor que, certamente,
a vida inteira
foi tua companheira...
Contigo «ouço passar o vento»
e chamo-te «Mestre»,
com prazer e alegria,
sabendo estar perante
de uma criação
da própria Poesia...
Ouvindo a guitarra portuguesa de Carlos Paredes
Ana Flor do Lácio