Carta a meu pai...
Ontem, tinhas o olhar de ver muito além
E levavas pela mão este, que era quase ninguém;
Sorrias o teu sorriso de encantar
E achavas estórias de sonho na chuva e no luar;
Pintavas de sonoros azuis e verdes o amanhã
E nada retardava a passada desse teu afã;
Tomavas as dores como um alento ou elixir
E dizias, por gestos únicos, o amanhã, o porvir!
Ontem, havia pirilampos num arrebol de alfazemas,
Nas noites quentes dum estio de cansaço e dilemas;
Rios de suor e esperança a inundar as Ave-Marias
E um quase sussurro erguia-se das entranhas dos dias;
Ainda que desmaiasse o querer, logo o dever mandava
Que descosesses a sorte e, a sina mudava,
Ao mando das mãos e do teu corpo enxuto,
Que se firmava na honra do ser impoluto!
Ontem, nas horas amargas, sobrava o futuro
E um sonho crescia a par de ti, esforçado e puro,
Dando cor às cores dos campos sóbrios, floridos,
Desses tempos mornos e lentos, intensos, mas idos!
Hoje, o olhar esmaeceu, como se a aurora nublada
Trouxesse consigo o tantã dos dias e de rajada
Tudo fosse apenas pouco, ou quase nada…
Hoje o tempo cavou sulcos no teu rosto cru
E deixou que a alma esmorecesse e mostrasse nu
O ser que guardavas na concha da vida: tu!
Hoje, os dias esgotam-se no lento fugir das horas
Sem luares de riso, nem chiadoiro de alcatruzes nas noras!
Hoje, sei, pastoreias a memória e guardas, no cós
Das desventuras, um diário feito de cicatrizes e nós
Que denunciam o medo, a dúvida e a saudade atroz.
E o silêncio, que fala e gesticula e grita, quando te calas,
Diz mais do que queres dizer e, quando falas,
As palavras saem a meia voz, ecoando pardas e ralas!
Hoje, a luz que se projeta em ti, faz-te, ainda mais,
O homem que se fez homem no labor cativo dos ais!
Hoje, o sol e a lua nascem e morrem sem qualquer clamor
E as estações do ano chegam anónimas e partem sem fulgor!
E se nas copas exaustas o vento dá e amedronta o passaredo
Não é por ele que chega o futuro, que ainda é segredo!
Amanhã… Que notícia trará o tempo que há-de vir
E que estrondo de trovão rasgará o silêncio fazendo ruir
A certeza de que nunca te perderei e te perderás?
Amanhã, depois que descer o agora e depuser, em paz,
O seu cetro de rei, que ainda empunhas, que restará,
Que não seja a alegria, a honra, a gratidão e o amor, papá?
Ontem, hoje e amanhã… enfim!
Sempre seremos um só…
Carne da carne, pó do pó...
Eu de ti; tu de mim!
Em 01.Ago.2011, pelas 08h00
PC