JANELAS OGIVAIS / MORMAÇO /JARRÃO DE PIRILAMPOS
JANELAS OGIVAIS I (29 mar 11)
Como um salão de âmbar as janelas
se abrem ogivais desde o passado,
de antigo olhar seu vidro trespassado:
remotas mãos tocaram em suas telas.
Por elas já se viu combate irado,
contemplaram-se igualmente damas belas,
donairosos cavaleiros em suas selas,
desde os séculos do vetusto califado.
É em Saragoça que se ergue esse castelo,
que já escutou o solene juramento
e a placidez da longa tarde calma.
E nas vidraças deste alcáçar ponho o selo,
pois os poemas, afinal, são tratamento
com que curo as feridas de minhalma.
JANELAS OGIVAIS II
De certo modo, o sol dos velhos dias
foi nestas almenaras captado.
O calor do entardecer está pintado
nesta panóplia de cores em orgias.
Ainda aquece, no tempo mais gelado,
esta caixa de Pandora, em fantasias.
Não somente a esperança aqui sentias,
mas todo o mal ficou aqui, tapado
por sucessivas mãos de tanto ouro;
e nas janelas de molduras trabalhadas,
por mãos cativas permanente congeladas,
sente-se ainda a ilusão de algum tesouro,
pois traz mais luz em sua alvenaria
que a palidez do sol que nos espia.
JANELAS OGIVAIS III
Durante séculos quedou abandonado,
morada de corujas e morcegos,
refúgio dos mendigos e dos cegos,
do fugitivo leproso escorraçado.
Em suas muralhas pode ser localizado
o Manuscrito, de tão velhos apegos;
decerto aqui, no furor da chuva em regos,
buscou abrigo o viandante já encharcado.
E então as lâmias surgiram, muito belas,
durante a noite restaurada esta ruína:
salões brilhantes e leitos de calor...
E ao despertar, só o frio sobre as costelas,
entre as múmias engelhadas, em sua sina,
seu coração quase explodiu de horror!...
JANELAS OGIVAIS IV
Mas a cinza dessas geadas se derrete
contra os desertos bastiões e suas ameias.
No rendilhado das antigas teias
há uma voz de muezim que se intromete.
Não é o Alhambra, cuja lenda nos inquiete,
mas o castelo de restauradas veias
não se consagra a madonas ou a deias,
mas ao Deus único que a alma nos afete.
E é por isso que está cheio de luz,
mesmo na quadra em que flutua a neve,
pois guarda a vida dos mouros de outros dias.
Antes que a Espanha lhe impusesse a cruz
e dos poetas cessasse a vida breve
nessas paredes recamadas de elegias...
MORMAÇO I (2008)
Platão foi um filósofo de grande aceitação.
Teve muitos discípulos e nada comezinho
saiu de seus diálogos, que até hoje, com carinho,
são estudados por todos, com grã admiração.
Platinho, no entretanto, foi filósofo mesquinho.
Era apenas um escravo e até lambia o chão
em que Platão pisara, com grã abnegação,
nunca teve discípulos e até morreu sozinho...
Pois vejam o contraste entre o peripatético
amante do sonhar, o mestre do idealismo,
propagador de Sócrates, de Aristóteles mentor
e o pobre do Platinho, em seu viver patético,
com quem me identifico, em puro concretismo,
lambendo o chão de versos humildes em teor...
MORMAÇO II (2 abr 11)
Pois trago o peito bem cheio de neblina,
nessa ausência absoluta de emoção.
Há muito tempo reparti meu coração
por amores que encontrei a cada esquina.
Já houve tempo em que serviu de mina:
para cada sorriso, uma paixão.
Mas hoje o desaponto, de antemão,
me agarra firme e puxa pela crina...
Não me disponho mais a nova espora.
Vazio o peito, nem sequer desilusão
consegue ali de novo se arraigar...
Contemplo apenas... E a ironia demora
a me sair do peito... Em precaução
contra sorriso que me queira balançar.
MORMAÇO III
Não que sejam tais sorrisos muito raros.
Procuro agir com plena gentileza
e toda a solitária, com certeza,
recorda seus instantes mais amaros
e seus sorrisos não são artigos caros:
deixam o rosto mais cheio de beleza,
praticados ao espelho, atrás da mesa
em que acumula cosméticos avaros...
Mas não são realmente meus sorrisos.
São dirigidos a possibilidades,
são mais esgares de claro desespero,
cadáveres estrídulos de outros risos,
mil esperanças sem esperabilidades,
que os verdadeiros eu já não mais espero.
MORMAÇO IV
E assim me identifico. Sou também Platinho
e minha filosofia não tem aceitação,
nem pequena e nem grã... Mas sigo esse Platão,
que a companheira da alma imaginou sozinho.
Mas a neblina assim formada, de mansinho,
nesse vácuo que deixou meu coração,
essa paina solerte de algodão,
foi a única metade em meu caminho...
Sorrisos encontrei no meu passado
e muitas foram as vezes dos abraços.
O coração, porém, ainda é mesquinho.
E nessa vida que tenho escriturado,
a alma irmã de todos os cansaços
é minha certeza de que ainda sou Platinho...
JARRÃO DE PIRILAMPOS I (4 abr 11)
Os vagalumes são guardados numa jarra,
observados por meninos fascinados.
Eles brilham ainda, capturados
talvez por rede ou por humana garra.
É apenas a tampa que os amarra,
mas se tentam escapar, esperançados,
pelas mãos dos meninos empurrados
são novamente para sua masmorra.
E ali brilham, quais gnomos encantados,
em seu inútil movimento circular,
batendo contra os vidros da prisão,
enquanto os carcereiros desalmados
nem percebem, nesse louco voejar
o sofrimento dessa humilhação.
JARRÃO DE PIRILAMPOS II
E caso o percebessem, que fariam?
Os orientais prendiam em gaiolas
ditas luciérnagas e buscavam pô-las
em suas choupanas, que iluminariam
dessa luz intermitente que proviam:
fosforescência brotada de suas colas,
prisioneiros sem culpa, pombas-rolas
acorrentadas aos pombais em que viviam.
Esses meninos possuem eletricidade
no conforto das próprias residências,
mas no fascínio de tal curiosidade,
observam com prazer essa impaciência
dos pirilampos, em sua incandescência,
no desgastar de sua vitalidade...
JARRÃO DE PIRILAMPOS III
Porque eles morrerão, bem certamente,
emitindo esse verdor de confusão
ou o amarelo inútil da paixão,
pois não podem circular, em tal pungente
calabouço de mágoa transparente,
cada gota de luz um coração.
E desse código morse a interrupção
cada convite revoga permanente.
Mas iluminam os rostos dos meninos,
em seu fulgor transitório e amarelado:
olhos castanhos também intermitentes,
nessas jovens feições, os traços finos,
um a um, perfeitamente destacado
pela morte dos cativos inocentes.
JARRÃO DE PIRILAMPOS IV
E inocentes também são de crueldade
esses meninos que só querem distrair-se,
vendo essas luzes, seus olhos a nutrir-se,
na transitória refeição da eternidade.
Quiçá outras crianças, na verdade,
buscando sem maldade divertir-se,
mantêm os dois meninos, no impedir-se
que seus sonhos se façam realidade.
E assim vivemos nós, sob redomas,
julgando divisar na transparência
de vidro dessas jaulas, realidade,
até cairmos prostrados pelas comas
de nossa vida ao final da decadência,
sem jamais encontrarmos liberdade.