Moça do passado

Moça do passado

Algemada a esparadrapos, cânulas—alimento e água—

Sonha

Vive

Revê seus heróis-amigos em vidas

Com horário marcado por sabonetes, colônia, dentifrícios,

Pelas frestas sujas de seu rádio de pilha.

Contam-lhe, outra vez, histórias:

Moça pobre trabalha em casa de rico, esposa morre, cuida dos filhos, viúvo casa-se com ela;

Pensão do luar acolhe operário, pintor de paredes, lavadeira, doméstica, escriturário, balconista, vagabundo, e a vida corre por quartos, salas e cozinha;

Convento esconde segredos de mulher desvelados, em gotículas, cada dia ao longo dos anos;

Família grande tece tramas cotidianas de vida simples que se esvaem por meandros de sombra.

Seus olhos

--parados, para os que a contemplam com dó—trabalham na inconsciência.

Recriam ficções:

Passado sempre seu presente.

E seus heróis

Albertinho Limonta

Isabel Cristina

Sóror Helena da Caridade

Mamãe Dolores

E Antonio Maria

Conversam com ela, bem de mansinho,

Ao som de “A deusa da minha rua

Tem uns olhos onde a lua,

Costuma se embriagar.

Nos seus olhos, eu suponho,

Que o sol, num dourado sonho,

Vai claridade buscar.”

E a moça que fora um dia

Revê amores & desamores

Diluídos em esperança renascida

Em vozes do rádio rachado.

E abre o portão.

Sua rua emerge:

Ameixeira, cadeiras de abrir, térmica coberta em couro & chimarrão,

Conversas , risadas—orelha grudada atrás da veneziana da frente— planos dele (churrasqueada, festa, empreitada, pescaria e praia só para homens).

E a música segue em poças

“Espelho de minha mágoa

transporta o céu para o chão”.

Na cama,

Presa a esparadrapos e cânulas,

Sua alma esvoaça

Por histórias, vestidos de chita, bailes, planos, churrascos,

Festas, filhos frustrados antes de nascer, e suas novelas...

Borboleta,

Asas pesadas de passado,

Volta a tempos de vozes & ilusões.

Pousa.

Asas secam a um sol novo.

Mas voa de volta.

Passado perpétuo de moça

—idosa , hoje, a chorar o presente

deixado atrás de seu armário

“A ruazinha deserta

É uma paisagem de festa

É uma cascata de luz.”

Ilram Rekrem

Dedicado a uma pessoa que nunca aprendeu a viver.

Canção "A deusa da minha rua" é composição de Newton Teixeira & Jorge Faraj, musica-tema da novela de mesmo nome.

Ilram Rekrem
Enviado por Ilram Rekrem em 22/10/2009
Código do texto: T1881026
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