“O mundo é um moinho”
(outra homenagem a Cartola, o músico que eu queria ser)
Linda na chuva
Ela
é
a viagem além mar
o vento da noite do dia
da minha eterna vontade
de ser de novo eu
Mas sou somente a lágrima salgada que caiu no mar e sumiu
me sinto a traíra que ninguém pescou
o passarinho que não desejou fugir
a sobrancelha que ficou maior
a rapinha do angu
o último fósforo que esqueceram apagado na caixa
a tanajura sem bunda
o folheto da missa que ninguém leu
o coringa perdido no baralho
a pomba solta com urubus
a lamparina em dia de noite triste
a mão cheia de calos
e o arroz que pegou fumaça e tenho que comer.
Quando o mundo tornou-se esse moinho?
o adolescente sem rumo
a criança sem mãe
a pipa solta sem linha
o balão que subiu sem rumo
a última bala do botequim
Tais momentos - paradoxalmente - me enchem de esperança
como o leiteiro que teima em vender o leite na garrafa
o padeiro que entrega o pão ainda na madrugada azul
o senhor do picolé
o amolador que retoma as ruas para verificar as antigas tesouras
a professora que não desiste dos alunos
ou a costureira que encontra o dedal
Sinto-me louco e esquecido no manicômio já fechado
um doido que se acha Napoleão
o santo das cruzadas que teimamos em adorar
o homem cego na avenida
o velho esquecido no asilo
a pedra do arroz
a mão cortada que balança os dedos...
... no interior do moinho do liquidificador que se tornou essa porca e pobre vida.