Os Olhos sob seus Pés
A casa, velha e com dois pavimentos.
Segundo andar: sala e quarto, moram mãe e filha.
Lá em cima, na janela, a mãe vê a figura
esguia de Isaurinha se perder ao longo de uma rua
despida de árvores e de tráfego,
cheia de enormes feridas abertas em nome do progresso.
Ela não entende as feridas,
não entende o progresso,
não entende a falta das árvores,
não entende Isaurinha.
Mas foi só o anúncio.
Se Isaurinha quiser pão, ainda tem um pedaço.
Tem café e queijo também.
Volta o filme. É alguma coisa da Idade Média, sei lá.
Aqueles cabelos não são cabelos, são perucas.
Idade Média. Quanta riqueza, sutileza, quanta roupa.
Tudo aquilo devia ser tão caro.
Começa a cochilar antes do próximo anúncio.
Mas ainda é cedo. Levanta, lava e guarda a xícara.
Sente falta, na cozinha, de ter Isaurinha pra lhe perguntar
alguma coisa que agora já não sabe bem.
Agora sim, pode sentar-se.
Os pés na mesinha de centro e ver o filme sossegadamente.
O filme da Idade Média.
Roupas caras, perucas, perucas pra quê?
Cochila mais forte antes do próximo anúncio.
Tenta resistir, mas adormece profundamente.
Ronca.
São 2:15.
Isaurinha abre a porta.
Mãe tranquila dormindo no sofá.
A luz da TV ilumina a sala,
o que torna desnecessário procurar o interruptor.
É um policial antigo.
Na cozinha a mesa está posta.
Vou comer alguma coisa.
Primeiro tirar essa roupa.
No quarto, acende a luz,
encontra a janela aberta.
Rio, 25/05/1977