A ÚLTIMA SOBRE NÓS
A Última Sobre Nós
É uma manhã chuvosa e solitária;
eu olho pela janela do trabalho
e - de tão escuro - parece ainda que nem é dia.
Nessas horas eu me lembro do quanto te desejei.
Os telhados molhados, as frases feitas de amor,
o desconhecido, as luzes distantes;
evito clichês, repetições, casos vãos e vazios,
promessas nunca cumpridas e fugas impossíveis.
Sei muito bem do que não sou capaz.
Dessa atmosfera saudosista, surge seu rosto
em alguma nuvem do passado.
Quando, enfim, te vi endiabrada
pelo reflexo simplificado
de situações menos complicadas
ao longo dos anos que passariam
sem você, ou a mera expectativa,
bastando você; mas não era,
e mesmo precisei que não fosse.
Tá garantida nossa dívida.
E minha poesia já não leva seu nome,
sua música não toca na rádio,
o teatro sem público,
a publicidade sem produto,
e nossos filmes estão anacrônicos.
Nós morremos numa manhã chuvosa
como essa, numa tarde...
E noutra tarde nós morremos,
mas é de dor barata, infantil,
sem profundidade, sem adequação.
Não tive filho. Seu filho não é meu filho.
Suas linhas não me conduzem,
não me induzem a nada, nem ao erro,
porque as falhas são também filhas da solidão
de uma manhã chuvosa como essa.
Então me explica o diafragma
que controla toda sua lástima,
já que me abstenho.
Sem mais mentiras,
doces mentiras,
sem mais.