A CRÓNICA DOS PARALELEPÍPEDOS
José António Gonçalves
os paralelepípedos da minha cidade
converteram-se em fantasmas de betão
e andam brincando às ruas na memória
dos jovens do meu tempo
sentem-se perdidos na escuridão sem idade
sempre com um bilhete de autocarro na mão
e nem fazem palavras cruzadas - têm na história
o passatempo guardado na mesa de cabeceira
dos jovens do meu tempo
trazem cigarrilhas baratas escondidas na carteira
no lugar onde dantes guardavam as notas do dinheiro
esqueceram-se do prazer de sermos o primeiro
a chegar aos lugares a ocupar no balcão a cadeira
dos jovens do meu tempo
se alguém lhes pede um cigarro dizem que não fumam
e mostram os bolsos vazios como a pedir desculpa
saem a horas para o emprego e nada os catapulta
a faltar em casa a rever na tv os filmes sobre o vietnam
dos jovens do meu tempo
e todos os dias pisam os mesmos paralelepípedos
que estão por debaixo do alcatrão cobrindo a estrada
penteiam-se endireitam a gravata compram insípedos
o jornal igual ao lido no trabalho e já não sabem nada
dos jovens do meu tempo
um dia deitam-se com os óculos na ponta do nariz
perguntam à mulher se ela sempre fizera o jantar
e desvalidos deixam-se cair sem um grito e ela alar-
mada a interrogar-se o que fazer - sentia-se a mais infeliz
dos jovens do meu tempo
nem todos fomos ao funeral e uns contavam sobreviventes
entre próteses internamentos lares vesículas e uns by-pass
alguém perguntava pelos paralelepípedos e outros pelos dentes
e desaparecemos no nevoeiro sem um adeus - era o desenlace
dos jovens do meu tempo
JOSÉ ANTÓNIO GONÇALVES
(inédito, 31.1.04)