CÂNTICO

 

 

Caminhei sobre as folhas secas de outono, tingidas de sangue e ouro. Minhas vestes, em trapos se tornaram expondo a nudez da pele, os meus cabelos desgrenhados, as minhas mãos crispadas faziam sangrar o relicário acordando a sua imagem. Eu era a dor. Eu era a consistência da dor. Nem mesmo as aves noturnas, fugitivas do umbral e presas em teias pegajosas, eram minhas companheiras. Era a dor. A mais angustiante dor desfazendo os sonhos e a vontade de viver. A salmoura corria nas minhas veias e a planura dos meus ossos doía-me na urgência da lava fervente. Não havia horizonte aos meus olhos, porque não estava o meu amor ao meu lado. O negrume dessa noite recai sobre o coração dos homens, reparte amor, em tristeza e solidão. Há quem pense serem fantasmas, que, acorrentados à consciência da carne maldizem o amor, transformando açúcar em sal, ouro em pedras sem valor. Alimentam o monstro que os consome diuturnamente e reinventam um céu sem estrelas...

 

Era o sexcentésimo septuagésimo sexto dia!

O meu olhar finalmente encontrou o espelho dos seus olhos

Morri e perdi a conta de quantas vezes renasci

Menina

Mulher

Sacerdotisa do seu amor

Amante do seu corpo

Mulher

Menina

Nos seus sonhos.

Naquele momento

Na ansiedade suarenta das mãos

Que se reconhecem ao primeiro toque

Não existe passado

Não existe futuro

Existe a procura

A sede

O sonho

A vida

O amor

A fome

O desejo

E o beijo se derrama liquefeito

De afogamentos em ondas convulsivas

Em nossos lábios náufragos.

 

... um céu sem estrelas é manto de veludo jogados aos pés da santa, é mortalha do Sagrado Coração pendurado na parede,  e que acende o medo nos seus olhos de menino...

 

Era o meio do dia!

“Dê-me as suas mãos

As minhas são suas”

Passos e caminhos

Pedras gastas

Calor

Ruas

Carros

Praças

Casas

Portas

Escadas

Porta

O mundo girando a sua presença

Feito um anjo em carrossel

O meu paraíso

O meu pecado

O dorso

O reverso

O côncavo

A fonte

A dádiva

A fêmea

O Macho

Alfa e Omega

A pedra

O sacrifício

A dor

O prazer

A vida

O amor

 

... nas águas de um rio batizei os meus pés-, deixei para trás todas as mulheres que eu fui, todas as mágoas, todas as lágrimas e renasci criatura ante o criador. Recitei um salmo, colhi uma flor, comi uma fruta, beijei suas mãos, afaguei seus cabelos, respirei o seu sono, me aqueci no seu corpo adormeci em você pra nunca mais acordar em mim...

 

“Será que isso é amor? Um puro amor, uma quase maré?”

 

... uma praça, uma igreja, poesia de boca em boca ____ sua boca e a minha seu olhar e o meu____um pedaço de pão, um gole de café, sua risada e um beijo gelado de sorvete. Uma foto na janela, uma cerveja outro beijo, uma subida e uma descida, um cigarro e um descanso, seus pés descalços, seu corpo nu, cicatrizes, maciez, ternura, sua boca, seus dedos, um papel, um livro, uma foto. Uma janela de vidro, um rio e suas lembranças... uma libélula pousa na minha mão____ isso é amor sem ter começo e nem fim. Somos dois, somos um e o tempo brincando ao redor daquele menino...

 

Só um menino...

Só um menino/amor

 

 

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foto: LLopez

 

Luciah Lopez
Enviado por Luciah Lopez em 05/09/2023
Reeditado em 05/09/2023
Código do texto: T7878356
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