O MILAGRE DO POETA
JOSÉ ANTÓNIO GONÇALVES
Espalhados pelo chão, os livros.
Sempre os livros. De poesia,
evidentemente. Uns já cansados
do uso das suas páginas abertas,
conhecem os poemas de cor. São,
especialmente, os de amor. Dizem-nos
para evitar o acto de serem lidos. Relidos.
Porém, debalde. À espreita, atento,
desperto, regressa sempre o leitor.
A madeira é nua. Encerada, brilhante,
com o verniz das capas. É a madeira
do chão. O soalho, protegido. Lá fora,
esquecido, ficou outro volume de versos.
No meio do jardim, instala-se, em busca
do trigo, para apurar da sua condição
de joio. Está húmido, molhado, estragado.
Não resistiu e deixou-se ler por uma rabanada
de vento e por dois olhos pueris de orvalho.
Há pequenas frestas nas estantes. Sóis
breves, projectando sombras rectangulares
nas paredes brancas. Não serve de nada
cobri-las com outras obras. Em cada lombada
há um título diferente, mas é como o rosto
de muita gente que nos parece sempre igual.
É assim que se constrói uma constelação.
Na junção das estrelas aos planetas, a poeira
estelar é a atracção, como os índices, afinal.
Na mesa, os papéis estão imóveis. De surpresa
chega o poeta. Traz uma colecção de canetas
e utiliza-as como adagas, cortando-lhes a pele.
Procura que sangrem. Gritem. Sofram. Cuspam.
Quer a dor dos outros, ainda rosado e confiante
na sua própria felicidade. Sente que algo o impele
a transformar em poesia a mágoa que, sendo alheia,
observa como genuína. Não sabe se há lua-cheia
ou quarto minguante. Apenas os versos o frustram.
Vazio. Desprovido de musa, o espírito do poeta
assombra a casa. Respira mal e arrasta correntes,
tosse e reza, numa mescla de velhas pragas e hinos
novos. Traz no bolso um lenço sujo, umas moedas
e umas folhas soltas de calendários com esboços
de textos inacabados. Na sua cabeça tocam sinos,
cantam pastores, condenados suplicam por perdão,
mulheres sussurram de prazer. Pede por um milagre
e tem-no. De manhã acorda: é um livro, acabado de ler.
José António Gonçalves
(inédito 28.11.04)