Uma curta história de vida em 4 estações (2015 revisitado em 2022)
1.
Quando eu abri meus olhos
No meio da lama
A rainha me perguntou “tudo bem?”
E aproveitou para me dar algo
Que disse que me faria bem
O Rei sabia que era tudo um truque
Mesmo assim acendeu um cigarro
E ficou ao seu lado, contrariado
Quando a Rainha disse que não queria partir
Eles andaram até mim
Depois de algumas taças de vinho
E um champanhe ruim
E como o Rei não teve coragem
De abrir a boca
(Ele deu a entender que estava cansado)
A Rainha se agachou e me sussurrou
Com seus dedos suados:
“Você vai conseguir tudo o que quer
Mas pelos motivos errados”
Então ela riu
e apertou o cigarro
Na ponta dos dedos
o filtro queimou sua pele
E o Rei tossiu
Disse que não era bem assim
Mascando um chiclete
A Rainha olhou para o Rei irritada
Mas não quis discutir
Eles partiram
Era quase meio dia
A lama fervia
Porque era verão
E eu, cansado daquela rotina,
Quis pegar o último trem
Mas ainda não era tarde
Esperei a nova estação
Até eu crescer
Contra os limites daquela cidadezinha
E quando as folhas amarelas
Cobriram a lama seca e vazia
Eu sentei na minha janela
E decidi que naquele inverno
Não iria plantar
As seis horas fui para a estação
Deixando para trás aquele pedaço de chão
O último trem me levou pra cidade
E lá eu comprei um jornal
2.
Na primavera, sentado num banco da praça
Pela primeira vez tive saudades de casa
Durante o intervalo do trabalho
Quando eu estava mais distraído
Eu te vi passar, apressada e descalça
Eu me apaixonei
você não teve tempo de retribuir
eu corri e corri
atrás de ti
Choveu e você desapareceu
No meio da multidão
Seu vestido arrastando no chão
E as mãos no chapéu
Eu te procurei até o inverno chegar
Você morava no quarteirão
mas nunca me viu passar
Nem nunca prestou muita atenção
nos acasos que a vida entrega sem cobrar
Eu desisti de mim e de ti
Juntei uns trocados
E pensei em comprar um violão
Mas na entrada da loja
Um velho me barrou e disse “não!
Todo o tempo, meu querido,
Está passando corrido e sem sentido
Você precisa entender que a vida
É uma história que nada significa
contada por um ator ruim”
Me pediu umas moedas
Falou de Hitler e de Vargas e disse
embriagado e conformado
“até os vagabundos
têm pena de mim”
Ele me abanou de longe
Eu meti as mãos no bolso
E afundei o pescoço
Nas barras do metro
Cheguei no fim da linha
A cidade anoitecia fria
Eu resolvi partir
E durante toda a madrugada
Eu perdi as contas
De em quantos ônibus eu subi
3.
Cheguei no bar já era quase dia
Ele calçou seus sapatos
E desastrado, pisou no meu pé
me virou do avesso
Disse “cuidado, meu amigo
Ou você engole todo o mistério
no primeiro gole de gim”
Ele então me levou até seu quarto
Descalçou seus sapatos
E me pediu pra ficar
Eu estava um pouco atordoado
Mas deitei ao seu lado
E aprendi a o amar
E quando o sol raiou o dia
Na manhã em que o outono aparecia
Eu sonhei com os passos dela
Não mais descalça
Mas de branco, salto alto e véu
Marchando sem firmeza
E sua voz dizia, sem medo e sem certeza
‘Sim, eu aceito’
Minha amada, se eu pudesse
Estar aí nessa capela
Eu saberia
Ao ver suas mãos tremendo frias
Que você nunca seria feliz
Afinal você nem fechou os olhos
Quando o padre declarou ao noivo
“marido e mulher!
Pode a beijar”
...eu a teria impedido de casar
Eu acordei, ele já estava acordado
E num silencio atordoado,
Ele suspirou e deitou
sua cabeça em minhas mãos
E eu não pude deixar de notar
Que os lábios dele estavam secos
E sua voz estava falha
de tanto chorar
E apesar de eu saber
Que era por minha causa
Eu não tinha palavras para lhe consolar
e só olhei para lua
Até ele cansar de me culpar
Insistindo eu deitei do seu lado
Ele fugiu para a janela
Acendeu um tabaco
E eu cheguei a rir ao pensar
"você nunca vai ter dinheiro
Pra comprar um cigarro"
Ele tragou pelos meses de outono
Até seu isqueiro acabar
E finalmente quando ele se reacendia
Numa manhã nublada e fria
Sem sussurros nem carícias
Ele desabotoou minha camisa
Só porque não tinha mais lágrimas
Pra chorar
engoliu a dor num soluço
Desenhou sua boca na minha língua
E disse "eu entendo...
mas você ainda pode me usar"
Mas no fim dessa manhã cinza
Enquanto ele adormecia
Fui para o banho pensando
Se um dia eu realmente seria seu
E quando enfim deitei ao seu lado
Vi ele tão sossegado
Chorei em silêncio até meu rosto doer
No outro dia
Ele me deu bom dia
Mesmo sabendo que nada tinha mudado
Eu resolvi ficar
4.
Quando eu disse a ele
Que pensava em voltar para casa
Já era o último verão
E a lama que no início da vida me prendia
Agora me fazia ter saudades
Daquele pedaço de chão
Ele não me pareceu surpreso
Apenas me abraçou
E finalmente me contou
Que há muito tempo
Também já havia amado alguém...
Eu parti
Estava fugindo da cidade
Como nos tempos de mocidade
Em que eu pensei haver algo a mais
Foi então que eu ouvi uma gargalhada
Que me trouxe uma lembrança
Tão longe e tão familiar
O Rei e a Rainha chegaram como fantasmas
Rindo alto
O vinho virado em vinagre
Chiclete mastigado
E o cigarro já apagado
Eles riram e riram
Até que eu ficasse calado
Seus dedos entrelaçados
Como se nunca tivessem brigado
A Rainha então se abaixou e sussurrou
Tão simples e complicado
“É claro que você foi malcriado
Você ainda não entendeu
que a vida é simplesmente assim?”