HISTÓRIA DE AMOR

AMPHORA

Encontrámos aqui o vinho, o gelo, o copo, o silêncio,

num lugar ermo de terra feito

e madeira velha por tempo:

o ressuscitar dos nossos sentidos e voz;

a escrita germinando

nos degraus húmidos do resistir.

Não há inverno nem verão. Ninguém fala.

Escuta-se o rumor do vento, se o vento sopra,

o silêncio da casa, da amphora.

E há vinho: natureza fresca.

E há mel, recolhido cuidadosamente no ano anterior.

Encontrámos aqui o vinho, o gelo, o copo, o corpo.

E fizemos amor.

*

Que casa querer depois desta casa?

Que corpo desejar depois do corpo ali?

*

Molhámos os corpos nos riachos

gerados no interior da neve e da montanha,

irmanados naquela mútua recompensa de gurgitares:

nós e as fontes; nós e as pequenas quedas de água,

no verdadeiro silêncio da terra.

*

Não havia memória.

Havia chão.

*

Às vezes, sentávamo-nos nas gotas de orvalho,

suspensas na relva

e revíamo-nos nos espelhos das nuvens dispersas,

vagueando em sonhos.

Adormecíamos, por vezes.

Acordávamos tão leves...

*

O frio não era motivo de abandono.

Habitávamos a casa, as réstias de sol,

a luz matinal coada na limpidez do espaço.

Fazíamos o jogo paciente da aranha tecendo a sua rede.

Seguíamos-lhe os movimentos.

Apreciávamos a lentidão das suas esperas.

Sentíamos pena das suas vítimas.

Como libertá-las, sem quebrarmos os ténues braços da prisão?

*

Era o equilíbrio natural que absorvíamos.

Amávamos. Conjugados no todo de um ambiente primordial.

E quem somos, para podermos quebrar o sossego da harmonia,

construída em todos os recantos

deste terno e pequeno mundo?

Sentávamo-nos, por vezes, no musgo.

Na frescura da terra semeada de pinheiros.

Viajávamos, depois, aos confins do eco

e nossas vozes regressavam mais quentes.

De amor.

*

E quando a mágoa espreitava

sob um sorriso,

dizias somente:

a noite só vem

quando os olhos se fecham de cansaço.

Antes, é a sempre e repetida loucura

dos encontros sem fim, sem fundo,

no outro lado do mundo.

*

Era a manhã vinha ao nosso encontro.

Em busca de um beijo húmido,

nascido no interior da noite.

Caminhavas pela madrugada preguiçosa

e removida das entranhas do desejo.

Amanhecia. Ou eras tu que caminhavas

à procura de um silêncio

envolto em nevoeiro matinal?

*

Respiravas sonhos inteiros

à medida dos teus olhos erguidos

na direcção da luz.

Havia um sol razante no arvoredo.

Um reflexo enorme na tua mão.

E o frio ainda não tinha nascido.

*

Brilhavam auroras nos teus olhos.

Nos teus cabelos batia o vento.

E as searas permaneciam atentas

ao lento declinar da tarde.

Um sentimento natural unia-nos

ao cheiro cinzento da terra.

Como penetrar a penumbra do sol,

sem desperdiçar o tempo da erva?

*

Baixo os olhos à torrente de água que nos liga.

Os teus olhos prendem-se atentos

ao lento declinar da tarde

e espantam-se.

A água não mais é cor de água.

Transporta, num turbilhão de nervos,

nosso sangue,

à procura de repouso

no interior mais fundo da terra.

*

Uníamos o cheiro da terra

ao intenso florir dos nossos olhos,

no espanto natural de termos mãos.

joaquim alves

lisboa.outubro.2007