Terra Sonâmbula
Ela gosta de ficção
Enquanto ele
Foi obrigado a admirar a realidade imposta
Deitada em chão de terra batida
Coberta por lençol de estrelas
E o chiado da barriga
Raspando a pele das costas
Ela teve super-herói de estimação
Enquanto ele amolava
A dor da saudade de outras vidas
Em memórias não vividas
Para enganar a fome
Que vez por outra escorria pela mão, pé e vizinhas
Ela brindou Natais
Viajou pela costa a desbravar litorais
Beijou a vida com a boca bem aberta
Mordeu seus mamilos
E arrancou com toda força
Sua roupa ensopada de amor
Como fazem os amantes
Ao derramarem gota por gota
Seus espíritos
Ele aprendeu cedo
A domar seus medos
Empregou ligeiro
Mania de olhar
A vida pela réstia
Da porta entreaberta
Do banheiro
Embalando como seu próprio rebento
As incertezas do futuro
E de um amor pleno
Suas vidas distintas
Me lembram romance de Mia Couto
Daqueles que embriagam a alma
E fazem o espírito viajar demorado
Pela extensão de um país
Preso pela morte, guerra e desgosto
Desses amores que se encontram
Quando em quando
E repousam seus corpos cansados
Em cadeira de balanço
Entre um gole e outro
De amargos dissabores molhados
Sim, eles me lembram
Que a vida pode ser cruel,
Afagar as cinzas da bondade
Enquanto se despede
Cuspindo verdades em brasa
Na cara de gente como você e eu
Gente que sente saudade
De tempos primários
Das andanças por outras vias
Cheias de pecados
E copos cheios até a metade
Daquela bebida quente
Que faz o coração bater
No mesmo compasso
De amontoados sonhos baratos
Talvez vivamos
Realidades completamente opostas
Em tempos difíceis
Em que é preciso
Pausar a morte
E encostar a cabeça
Na beirada do mundo
Pra enxergar a beleza
Que há ao redor da sorte
E orar
Para que o amor
De dois estranhos
Se encontre
E liquidamente floresça.