Fonte da Telha ao entardecer

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Começaram a descer, a maré e o sol – são as horas suaves do entardecer.

Da praia, desvanece-se a multidão, ficando apenas os amantes da solidão, da beleza sempre renovada do cenário marinho, das horas calmantes do dia.

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É cá ao longe, cá de cima, que paro o carro na berma das dunas entrelaçadas de cactos.

Ligo a Antena 2 ou instalo CDs que no momento melhor dialoguem comigo. Abro janelas e portas. E entro naquela abstracção em que levanto voo e vou fundir-me com cada grão de areia da praia imensa, cada onda que rebenta, cada gaivota que deixa marcas na areia alisada pela brisa ou com todo o bando.

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Eu sou a neblina que cada vez se torna mais espessa, sou a gaivota e o seu voo predador, sou o peixe que ela agarra e tortura para engolir.

Sou a liberdade do voo e a dor da morte, o sonho e a frustração, o acto e a impotência, a saúde e a depressão.

E é então que dou por ela, com os meus olhos de demiurgo.

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Ela usa um fato-de-banho clássico.

Evolui na babugem da espuma como uma bailarina. Faz com os braços, incontáveis exercícios respiratórios. Dança, avança quando a onda recua, recua quando a água avança.

Entusiasma-se à medida que a maré desce acrescentando mais arco-íris ao matizado da areia molhada.

Dança, corre pequenas corridinhas inocentes, faz flexões para a frente e para trás, pedala uma bicicleta invisível.

O seu ritmo intensifica-se e os seus improvisos tornam-se mais variados e frenéticos conforme a tarde vai perdendo luz.

E assim passa mais de uma hora!

Finalmente, o homem vem ter com ela. Parece-me mais velho. Percebo que usa calças de ganga arregaçadas à pescador, camisa de manga curta, aos quadrados, à pescador. Tem as costas já curvas, usa bengala.

De cada vez que lhe fala, ela dá mais outra corridinha. Faz pedaladas em volta dele.

Vejo que ele lhe faz uma festa na face.

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A noite começa a instalar-se no céu arroxeado e cinza.

Ele passa-lhe o braço sobre o ombro.

Cruzam a praia em direcção às casinhas de madeira, nas dunas. E assim desaparecem dos meus olhos...

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© Myriam Jubilot de Carvalho

Junho, 2005

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Myriam Jubilot de Carvalho
Enviado por Myriam Jubilot de Carvalho em 09/07/2020
Código do texto: T7000518
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